domingo, outubro 17, 2004

Pluralismo, o que é?

Quando dizemos pluralismo, estamos a referir uma perspectiva, segundo a qual o Estado não é monocrático, constituindo apenas uma parte especializada nos interesses do todo. Com efeito, o fundo sociologista e organicista, dominante no fin de siècle, tanto influencia posições estatistas e soberanistas, como leva ao reforço de posições pluralistas e consensualistas, não marcadas pelo estatismo, destacando-se uma corrente de estudo das coisas políticas onde alinham autores como o alemão Otto Von Gierke (1841-1913), restaurador do pensamento de Althusius, os britânicos F. W. Maitland (1850-1906), historiador do direito e das instituições, tradutor de Gierke, John Neville Figgis, pastor da igreja anglicana, (nascido em 1866), Harold J. Laski (1893-1950), G. D. H. Cole e Hillaire Belloc (1870-1953), autor de The Servile State [1912], bem como o norte-americano Roscoe Pound (1870-1964).

Toda uma geração que em nome de uma variedade de crenças, como o sindicalismo, o solidarismo, o socialismo ou a doutrina social-cristã, acabou por convergir num modelo consensualista e pluralista que se insurgiu contra o soberanismo. Isto é, os exageros positivistas e sociologistas acabaram por ser compensados por um quadro de valores, herdeiro do federalismo, do liberalismo tcquevilliano e do próprio tradicionalismo pré-absolutista ou anti-absolutista.

Posteriormente, Jacques Maritain vem proclamar a necessidade de uma cidade pluralista, onde procura conciliar-se a perspectiva orgânica do tomismo, nomeadamente a ideia de unidade de ordem, com as concepções democráticas pluralistas.

A cidade pluralista não se reduz à existência da autonomia administrativa e política das unidades regionais do Estado, impondo a admissão da heterogeneidade orgânica da estrutura da sociedade civil, enquanto sinónimo de sociedade política. A unidade de ordem ou de orientação resulta do bem comum, de uma aspiração comum. A unidade da cidade pluralista é uma unidade mínima que garante as fraternidades cívicas, as formações independentes do Estado e apenas submetidas às disposições genéricas sobre a liberdade de associação.

Muitos são os subsolos filosóficos que se cruzam neste pluralismo contemporâneo, onde será difícil encontrar a proclamada dicotomia entre liberais e socialistas ou entre conservadores e progressistas. Linhas de matriz liberal, de marca moderada e ética, podem retomar Locke, Montesquieu, os federalistas norte-americanos, Benjamin Constant e outros, como o krausismo liberdadeiro que, entre nós, preponderou nmo liberalismo regenerador, a partir de Alexandre Herculano e Vicente Ferrer Neto Paiva. Linhas de matriz socialista podem subir do federalismo de Proudhon ao guildismo, às teses britânicas do self-government e ao cooperativismo. Linhas do conservadorismo podem retomar certas perspectivas consensualistas do tradicionalismo, reinterpretar o humanismo cristão através do neotomismo, do solidarismo, do institucionalismo e do tradicionalismo, e reagir contra a omnipotência do soberanismo, do centralismo e do concentracionarismo. Também algumas teses progressistas podem assentar nas perspectivas da sociedade sem Estado do socialismo utópico, embrenhar-se de autogestão e procurar, no small is beautiful, as classicissímas teses da polis de há vinte e cinco séculos. À direita e à esquerda, pluralismo, individualismo, democracia, funcionalismo, divisão e separação de poderes, podem irmanar-se na defesa daquele antiquíssimo regime misto que tanto rejeita o atomicismo como o colectivismo. À direita e à esquerda, através do humanismo cristão, católico ou protestante, ou do humanismo laico, neoclássico ou modernizante, muitos se irmanam numa concepção anti-absolutista do político, através do ideal histórico concreto de consenso, da política como arte de unir os contrários, ou os simples divergentes, pela persuasão e pelo consentimento.

Esta nebulosa levará, por exemplo, um autor católico, como Jacques Maritain, a elogiar a prática política norte-americana, entendida como uma estrutura social que é espontaneamnete e organicamente diferenciada desde a sua própria base. Porque se devesse existir, na base, uma multiplicidade de comunidades particulares, também no vértice deveria surgir uma pluralidade de Estados que no seu conjunto formariam um grande Estado federal, marcado pela procura do equilíbrio entre o sentido de comunidade e o de liberdade individual. Paradoxalmente, essa corrente, recebendo as contraditórias designações de corporatisme ou de organicisme, foi, muitas vezes, retroactivamente interpretada como precursora das experiências autoritárias, ditas corporativistas, dos anos vinte e trinta, ou confundida com idênticas perspectivas de um organicismo hierarquista. Por nós, temos insistido na circunstância de haver uma fundamental distância entre o corporatisme, em francês, ou o corporatism, em inglês, e as experiências históricas do corporativismo. Se este acabou por ser um corporativismo estadualista, sem economia de mercado, mas com economia privada, diverso do capitalismo e do socialismo, já os modelos que apontavam para um corporatismo societário ou de associação se assumiam de forma mais corporacionista, aceitando o essencial herança pós-revolucionária da moderação liberal, nomeadamente pela invocação da chamada autonomia da sociedade civil, contra as perspectivas do democratismo jacobino, estatista e centralista.

É nesta senda realista, mas também pluralista, que se insere a obra de Arthur Fisher Bentley (1870-1957), The Process of Government. A Study of Social Pressures [1908]. Aí se defende que a ciência política seja uma análise dinâmica das instituições públicas, do political process, privilegiando-se o estudo do grupo, dado considerar-se que a política só pode ser real se for entendida como processo.

Por outras palavras, que devem estudar-se as instituições públicas tal como elas são, na sua dinâmica, e não as respectivas formas ou normas, que apenas nos dizem o que elas devem ser. Contudo, esta posição inseria-se na tradição liberal da cultura política norte-americana, não podendo confundir-se com paralelos realismos sociologistas da Europa Ocidental de então. Tinha profundas raízes no federalismo, nomeadamente em James Madison, e em todos aqueles que sempre temeram a tirania das maiorias e as respectivas consequências uniformistas. Uma posição particularmente realçada por John Caldwell Calhoun (1782-1850), na sua defesa de uma concurrent majority.

O pluralismo foi particularmente desenvolvido na década de quarenta por autores como Talcott Parsons e, depois, assumido por David Trumann e Robert Dahl, que o transformou na teoria da poliarquia. Contra estas teses, ergueram-se autores como C. Wright Mills, R. Miliband, Peter Bachrach e Morton Baratz.

Também na perspectiva liberal, o modelo, assumindo a herança de Alexis de Tocqueville e uma reinterpretação das teses federalistas, tem sido retomado por autores neo-liberais, na senda de Karl Popper e de Friedrich Hayek. Mais recentemente, voltam a retomar as sendas pluralistas os autores do comunitarismo norte-americano, como Michael Walzer. Próximos do modelo estão certos herdeiros do neo-tomismo católico, desde os que continuam o personalismo de Emmanuel Mounier, ao que têm a leitura do humanismo integral de Jacques Maritain.

O pluralismo tanto teve aproximações ao socialismo, com Laski e Cole, como perspectivas mais liberais ou mais conservadoras. Em todas elas, uma funda crítica ao modelo soberanista de Estado Moderno e uma certa tendência para uma aproximação a teses federalistas. Laski salienta mesmo que todo o poder e toda a organização são necessariamente federalistas, revoltando-se contra as perspectivas unitaristas e centralistas do Estado. No caso norte-americano, principalmente na teoria da poliarquia de Dahl, o pluralismo é sobretudo uma teoria da competição política, no sentido da defesa de um governo das minorias, quando considera que qualquer minoria pode ter sempre um bocado de poder quando influencia a decisão política sobre as questões que lhe interessam.

Certas perspectivas tradicionalistas do pluralismo, influenciaram os modelos corporativistas, principalmente os que defenderam um corporativismo de associação, como certos autores neo-tomistas. Na prática, os modelos que invocaram o corporativismo, negaram o essencial do pluralismo, ao assumirem perspectivas anti-liberais e antidemocráticas e ao edificarem um corporativismo de Estado, soberanista e hierarquista, nomeadamente quando adoptaram as teses concessionistas da personalidade colectiva, ao regulamentarem a liberdade de associação, considerando que os grupos só teriam existência depois da concessão estadual do reconhecimento.