Estado de direito, o que é?
Grande tem sido a confusão de doutrinas e o emaranhado de discursos sem crença sobre a recente aparição judicial na praça pública. Com efeito, ainda não nos mobilizámos em torno da força subversiva do Estado de Direito como Estado de Justiça. Porque muitos ainda continuam a confundir o Estado de Direito com o mero Estado de Legalidade.
Houve, e há, Estados que nem eram democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de Legalidade, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do dura lex, sed lex (a nossa I República e o nosso velho Estado Novo). Houve, e há, Estados democráticos que começaram por não ser Estados de Direito (o nosso Estado abrilista, de 1976 a 1982). Há ainda Estados de Direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de Justiça (o nosso Estado pós-cavaquista e pós-soarista, aqui e agora).
Até há pouco tempo, o Estado de Direito era mero apanágio dos juristas, continuava enevoado pela penumbra protectora do campo jurídico, era objecto de um discurso apenas acessível aos iniciados (Jacques Chevalier). Agora, que começa a surgir na praça pública, talvez se torne num assunto demasiadamente sério para ser apenas deixado aos magistrados, aos advogados e aos restantes juristas. Tal como as questões da segurança não são apenas para os polícias e os serviços secretos. Tal como as questões políticas não são apenas para a classe política.
Porque, felizmente, não vivemos num regime de paz dos cemitérios, temos aprendido, com a experiência, que o Estado é cada vez mais o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade (Stéphane Rials).
Com efeito, o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é, que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote. Segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito. Uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano teria poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que também poderia, quando assim o desejasse, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis. Terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.
Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.
Não se pense, contudo, que foi fácil esse regresso à política, à cidadania e ao consenso do direito. Não se pense que continua a ser pacífica essa operação de constitucionalização do poder e de juridificação da política (Blandine Barret-Kriegel). Essa perspectiva do Estado-aparelho de poder como simples manifestação do Estado-comunidade, o regresso à necessária concórdia entre o princeps e a res publica. Esse entendermos que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino.
É bem complexa a missão da paz contra a guerra e do direito contra o poder. É ciclópica a tarefa de sairmos da razão de Estado e entrarmos no Estado-Razão. E muitos continuam a não compreender a necessidade de uma operacionalidade que garanta o rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É difícil polir e civilizar o despotismo, isto é, darmos polis e civitas àqueles que continuam a não distinguir o Estado da casa, a confundir o governo político e civil com o governo doméstico, para utilizarmos as palavras de Montesquieu.
O próprio nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições, tem demorado a entrar no discurso dos juristas e nem sequer aparecia na versão original da Constituição de 1976.
O tópico apenas começou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, sendo por ele definido como absence of arbitrary power on the part of government.
Aí considera que the rule of law é o princípio fundamental da constituição britânica, distinguindo-o do conceito francês de legalidade, desenvolvido pelo direito administrativo, e do Rechtstaat alemão dos finais do século XIX.
Uma das primeiras consequências do princípio está na ausência doe poder arbitrário, ou discricionário, marcado pelo capricho, por parte do government. Com efeito, tal princípio impõe, por um lado a supremacia absoluta, ou a predominância, da lei regular, entendida como o oposto do poder arbitrário, e, por outro, a igualdade perante a lei, ou a sujeição de todas as classes à lei ordinária, sem privilégio para os próprios funcionários ou agentes do Estado.
Por último, a fórmula expressa o facto de, nos domínios da constituição britânica, the law of the constitution, não ser a fonte, mas antes a consequência dos direitos dos indivíduos, como a liberdade pessoal, a liberdade de discussão ou o direito de reunião em público.
O mesmo Dicey, observando o crescendo do legalismo e da codificação, principalmente nos domínios do direito penal, falava num decline of reverence for the rule of law, assinalando a profunda relação entre o direito e a moral social, os mores maiorum, no âmbite dos regimes democráticos.
O tal Estado de Direito nasceu como contra-imagem e contra-semelhança do Estado de Não Direito. Porque, como dizia o nosso jurista dos finais do século XVIII, António Ribeiro dos Santos, em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo. Porque, como dizia, no século anterior outro jurista português, Manuel Rodrigues Leitão (1630- 1691), nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode está muito perto de fazer o que não deve.
Isto é, o Estado de Direito mergulha bem fundo na história da liberdade. Em todos aqueles que sempre proclamaram que todo o poder é um poder-dever, um encargo ou um ofício. Onde o detentor do mesmo é apenas um servidor, um oficial, um servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder, pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder e deixa de ter direito
Porque o Estado de Direito visou reconciliar a política e o direito, onde, no dizer de mestre Cabral de Moncada, o direito tem de passar a servir uma política, mas onde, por outro lado, a política tem que ser limitada pelo direito. Porque o Estado de Direito é aquele onde o poder não só tem o seu fundamento no direito, como também está, externa e internamente, limitado pelo mesmo direito.
Desta forma, utilizando palavras de Alceu Amoroso Lima, visa-se que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro lado, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma, o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública.
Toda esta digressão teórica visa apenas chamar a atenção para a circunstância de a democracia restaurada a partir das revoluções demoliberais ter cometido o pecado de acreditar na sacralidade de uma lei feita por deputados eleitos e na plenitude de códigos de leis, ditos sistemáticos, sintéticos e scientíficos, reduzindo o magistrado à mera boca que pronuncia as palavras da lei.
Numa primeira fase, quando não se admitiu a hipótese de uma lei injusta e quando se considerou a justiça como mera questão metafísica, apenas se admitiu o princípio da legalidade, ou de primauté de la loi, conforme as perspectivas reducionistas das escolas do positivismo exegétido e codificacionista.
Ficou sem perceber-se que a lei tanto podia resultar de uma vontade de todos, através dos seus representantes eleitos, como da própria decisão de um executivo. Continuou a proclamar-se que a obediência faz o imperante e a considerar-se o poder soberano como o circuito directo de comando entre um superior e um conjunto de inferiores colocados em estado de sujeição.
Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.
É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual.
O que implica, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).
Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Desculpem continuar a insistir nestas doutrinarices, mas, voltando a glosar Fernando Pessoa, eu só posso admitir que o Estado está acima do cidadão se, antes, considerar que o Homem está acima do Estado.
Houve, e há, Estados que nem eram democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de Legalidade, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do dura lex, sed lex (a nossa I República e o nosso velho Estado Novo). Houve, e há, Estados democráticos que começaram por não ser Estados de Direito (o nosso Estado abrilista, de 1976 a 1982). Há ainda Estados de Direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de Justiça (o nosso Estado pós-cavaquista e pós-soarista, aqui e agora).
Até há pouco tempo, o Estado de Direito era mero apanágio dos juristas, continuava enevoado pela penumbra protectora do campo jurídico, era objecto de um discurso apenas acessível aos iniciados (Jacques Chevalier). Agora, que começa a surgir na praça pública, talvez se torne num assunto demasiadamente sério para ser apenas deixado aos magistrados, aos advogados e aos restantes juristas. Tal como as questões da segurança não são apenas para os polícias e os serviços secretos. Tal como as questões políticas não são apenas para a classe política.
Porque, felizmente, não vivemos num regime de paz dos cemitérios, temos aprendido, com a experiência, que o Estado é cada vez mais o lugar onde a sociedade se mediatiza, se pensa, tornando-se na instância onde devem regular-se as crises e tensões da sociedade (Stéphane Rials).
Com efeito, o núcleo essencial dos Estados Absolutistas dos Anciens Régimes era marcado por três tópicos nucleares: primeiro, que L'État c'est moi, isto é, que o Estado é igual ao ponto de cúpula do sistema, ao soberano rei-sol que devia ser déspota porque se presumia esclarecido, só pela circunstância de alguns filósofos quererem que as respectivas luzes se potenciassem pelo chicote. Segundo, o quod princeps placuit legis habet vigorem, que aquilo que o príncipe pretende tem força de lei, que o soberano está ab-solutus, solto, livre de limites, nomeadamente do direito. Uma ideia bem expressa por Hobbes, para quem o soberano teria poder de fazer as leis e de as abrogar, pelo que também poderia, quando assim o desejasse, livrar-se dessas sujeições anulando as leis que o perturbam e proclamar novas leis. Terceiro que princeps a legibus solutus, que o príncipe, o soberano, não está sujeito à lei que ele próprio edita para os outros.
Foi contra este ambiente de despotismo ministerial que o Estado de Direito do demoliberalismo contemporâneo veio responder, proclamando que o Estado de Direito, em vez de um pacto de sujeição (pactum subjectionis), face a um soberano exterior, exige um radicado pacto de união (pactum unionis), que se traduz tanto num contrato social originário, dito pacto de constituição (pactum constitutionis) como em sucessivos pactos de adesão de uma soberania popular periodicamente manifestada através de eleições livres e pluralistas, pelas quais pode mudar-se, sem a violência naturalista, o conjunto dos poderes estabelecidos.
Não se pense, contudo, que foi fácil esse regresso à política, à cidadania e ao consenso do direito. Não se pense que continua a ser pacífica essa operação de constitucionalização do poder e de juridificação da política (Blandine Barret-Kriegel). Essa perspectiva do Estado-aparelho de poder como simples manifestação do Estado-comunidade, o regresso à necessária concórdia entre o princeps e a res publica. Esse entendermos que o reino não é para o rei, mas o rei para o reino.
É bem complexa a missão da paz contra a guerra e do direito contra o poder. É ciclópica a tarefa de sairmos da razão de Estado e entrarmos no Estado-Razão. E muitos continuam a não compreender a necessidade de uma operacionalidade que garanta o rex eris si recte facias, do serás governante se fizeres o bem, podendo seres punido em nome do senão ... não.
É difícil polir e civilizar o despotismo, isto é, darmos polis e civitas àqueles que continuam a não distinguir o Estado da casa, a confundir o governo político e civil com o governo doméstico, para utilizarmos as palavras de Montesquieu.
O próprio nome Estado de Direito, proveniente da expressão anglo-saxónica rule of law onde rule não é império, nem law é lei, conforme as habituais traduções que são traições, tem demorado a entrar no discurso dos juristas e nem sequer aparecia na versão original da Constituição de 1976.
O tópico apenas começou a ser utilizado a partir de finais do século XIX, nomeadamente pelo impulso do professor de Oxford A. V. Dicey (1835-1922), na obra Introduction to the Study of the Law of the Constitution, de 1885, sendo por ele definido como absence of arbitrary power on the part of government.
Aí considera que the rule of law é o princípio fundamental da constituição britânica, distinguindo-o do conceito francês de legalidade, desenvolvido pelo direito administrativo, e do Rechtstaat alemão dos finais do século XIX.
Uma das primeiras consequências do princípio está na ausência doe poder arbitrário, ou discricionário, marcado pelo capricho, por parte do government. Com efeito, tal princípio impõe, por um lado a supremacia absoluta, ou a predominância, da lei regular, entendida como o oposto do poder arbitrário, e, por outro, a igualdade perante a lei, ou a sujeição de todas as classes à lei ordinária, sem privilégio para os próprios funcionários ou agentes do Estado.
Por último, a fórmula expressa o facto de, nos domínios da constituição britânica, the law of the constitution, não ser a fonte, mas antes a consequência dos direitos dos indivíduos, como a liberdade pessoal, a liberdade de discussão ou o direito de reunião em público.
O mesmo Dicey, observando o crescendo do legalismo e da codificação, principalmente nos domínios do direito penal, falava num decline of reverence for the rule of law, assinalando a profunda relação entre o direito e a moral social, os mores maiorum, no âmbite dos regimes democráticos.
O tal Estado de Direito nasceu como contra-imagem e contra-semelhança do Estado de Não Direito. Porque, como dizia o nosso jurista dos finais do século XVIII, António Ribeiro dos Santos, em um governo que não é despótico, a vontade do rei deve ser a vontade da lei. Tudo o mais é arbitrário; e do arbítrio nasce logo necessariamente o despotismo. Porque, como dizia, no século anterior outro jurista português, Manuel Rodrigues Leitão (1630- 1691), nem tudo o que se pode é lícito, quem faz tudo o que pode está muito perto de fazer o que não deve.
Isto é, o Estado de Direito mergulha bem fundo na história da liberdade. Em todos aqueles que sempre proclamaram que todo o poder é um poder-dever, um encargo ou um ofício. Onde o detentor do mesmo é apenas um servidor, um oficial, um servus ministerialis, um escravo do fim para que lhe foi conferido o mesmo poder, pelo que, quem abusa do poder, como quem abusa do direito, deixa de ter poder e deixa de ter direito
Porque o Estado de Direito visou reconciliar a política e o direito, onde, no dizer de mestre Cabral de Moncada, o direito tem de passar a servir uma política, mas onde, por outro lado, a política tem que ser limitada pelo direito. Porque o Estado de Direito é aquele onde o poder não só tem o seu fundamento no direito, como também está, externa e internamente, limitado pelo mesmo direito.
Desta forma, utilizando palavras de Alceu Amoroso Lima, visa-se que a política não negue o direito, evitando o espectro da tirania, e, por outro lado, que o direito não negue a política, impedindo que se levante o espectro da anarquia. Visa-se, em suma, o ideal democrático, esse regime que procura reunir a política e o direito no plano da ordem pública.
Toda esta digressão teórica visa apenas chamar a atenção para a circunstância de a democracia restaurada a partir das revoluções demoliberais ter cometido o pecado de acreditar na sacralidade de uma lei feita por deputados eleitos e na plenitude de códigos de leis, ditos sistemáticos, sintéticos e scientíficos, reduzindo o magistrado à mera boca que pronuncia as palavras da lei.
Numa primeira fase, quando não se admitiu a hipótese de uma lei injusta e quando se considerou a justiça como mera questão metafísica, apenas se admitiu o princípio da legalidade, ou de primauté de la loi, conforme as perspectivas reducionistas das escolas do positivismo exegétido e codificacionista.
Ficou sem perceber-se que a lei tanto podia resultar de uma vontade de todos, através dos seus representantes eleitos, como da própria decisão de um executivo. Continuou a proclamar-se que a obediência faz o imperante e a considerar-se o poder soberano como o circuito directo de comando entre um superior e um conjunto de inferiores colocados em estado de sujeição.
Numa primeira fase, o tópico foi conceituado como simples Estado de Direito Formal, como o Estado onde haveria igualdade da lei ou igualdade de todos perante a lei. Numa segunda fase, passou a assumir-se de forma bem mais complexa, quando se redescobriu que o direito não podia ser reduzido à lei ou ao decreto do príncipe, mas antes a algo de mais transcendente, a Justiça.
É que, num Estado de Direito, como Estado de Justiça, já não bastaria a mera igualdade da lei, exigindo-se maior profundidade, a igualdade pela lei ou a igualdade através da lei, a tal igualdade global, identificada com a justiça, que, se impõe o tratamento igual daquele que é igual, também exige o tratamento desigual daquele que é desigual.
O que implica, não apenas a justiça comutativa, mas também a justiça distributiva e a justiça social, isto é, as categorias aristotélicas e tomistas, que, segundo Leibniz, seriam correspondentes aos antiquíssimos preceitos do direito romano (praecepta juris): o alterum non laedere ( o não prejudicar o outro), o suum cuique tribuere (o dar a cada um o seu, o dar a cada um conforme as suas necessidades) e o honeste vivere (o viver honestamente, o exigir de cada um conforme as suas possibilidades).
Isto é, o tópico Estado de Direito é bastante mais problemático que o simples primauté de la loi ou que o mero princípio da legalidade, conceitos com que a doutrina positivista o tentou aprisionar nas teias do mero juridicismo.
Desculpem continuar a insistir nestas doutrinarices, mas, voltando a glosar Fernando Pessoa, eu só posso admitir que o Estado está acima do cidadão se, antes, considerar que o Homem está acima do Estado.
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