NEO-FEUDALISMO E ANARQUIA ORDENADA
Por
José Adelino Maltez*
Intervenção nas Jornadas de Relações Internacionais
ISCSP, em 26 de Novembro de 2003
Pedem-me, os meus queridos alunos de relações internacionais, desta nossa quase centenária escola, que olhe um pouco para o speculum da antiquada tese da "nova ordem internacional", tópico que chegou a ser moda no discurso dos grandes donos do poder mundial depois do ano 1989, quando alguns proclamavam a chegada do "fim da história", mas que, agora, depois do 11 de Setembro de 2001 e da intervenção norte-americana no feitiço das areias iraquianas, depois de já ter passado de moda, parece voltar a ser uma espécie de impossível lógico, quando, contra a ordem do terror, ainda continua por cumprir a urgente ordem da justiça, superadora da mera vingança privada da paz dos vencedores, essa nova versão de certa paz dos cemitérios, entendida como mero equilíbrio mecânico da restrita balança de forças, com que alguns qualificam a balance of power dos checks and balance.
Porque, contra a tese dos homens-lobos-dos-homens, onde o animalesco dos selvagens não pode ser apenas corrigido pelos selvagens com boas intenções, apenas resta o caminho e a verdade dos homens de boa vontade, com sede de justiça, essa eterna mãe da política e do direito, capaz de juridificar e institucionalizar o poder, ou de moralizar e civilizar a política.
Agradeço a honra do convite e recordo que esta tribuna propiciada pelos estudantes continua a ser a única via que me tem sido possibilitada para reflectir publicamente, no âmbito da minha escola, sobre a macropolítica das relações internacionais, dado que as minhas heresias teóricas nunca foram acolhidas nas páginas da quase inexistente revista do ISCSP e tem sido impossível penetrar curricularmente com estas "mostrengas" especulações no "curriculum" de uma licenciatura, onde as magnificências construtivistas continuarão a ser avaliadas tanto pelos criadores do dito como pelos próprios auto-avaliadores gestionários da criatura, em regime de conservadoríssimo círculo vicioso directivo, onde nem sequer se admite o conservadorismo do que "deve-ser", desde sempre decretinado pelo retroactivo do imobilismo como acto de traição...
Se me permitem exercitar o contra-poder da liberdade académica e reivindicar a minha qualidade de decano do grupo de ciências jurídico-políticas, obtido por concurso público, voltarei a recordar, aqui e agora, principalmente depois da partida dos soldados da nossa GNR para o Iraque, o primeiro artiguinho que publiquei sobre estas coisas de relações internacionais, ainda eu era um jovem estudante de Coimbra, em tempos de coice do Maio 1968, onde, pouco revolucionariamente, num clandestino jornal dito "Revolução", mas que estava no contra, em nome da mais sagrada revolta individual, assumia o trocadilho de existir uma espécie de "neo-feudalismo na anarquia ordenada".
Direi, novamente, de acordo com a perspectiva crítica de um neoclássico que não deixou de ser um velho liberal, para quem a tradição continua a ser um back to basics, num regenerador, ou revolucionário, regresso para seguir em frente, que a ordem mundial a que chegámos continua a ser uma desordem bem organizada e tentarei demonstrá-lo, recorrendo, em especial ao recentíssimo discurso do Presidente George W. Bush em Londres, datado de 20 de Novembro de 2003, onde o filho, repete algumas intenções de um pai que, no recato de uma sabedoria pouco dada a semear eucaliptos, não se tem tentado pelos activismos da aposentadoria intervencionista, porque acredita que depois dele não tem que vir o dilúvio.
I
A PROCURA DA ORDEM
Comecemos pelos princípios, porque in principio pode estar o fim, que potissima pars principium est, principalmente quando o nome não corresponde à coisa nomeada. Com efeito, ordem vem do latim ordine, isto é, disposição metódica das coisas regularmente classificadas, essa qualidade abstracta que gera o concreto ordenamento, o acto ou efeito de ordenar, coisa tão contraditória que tanto está na base da chamada ordem da bicada, que marca as sociedades animais, como pode gerar, entre os homens, aquilo que Fernando Pessoa qualificava como o preconceito da ordem.
A ordem legítima
Só que, como reconhecia Max Weber, toda a acção, especialmente a acção social e, por sua vez, particularmente, a relação social podem ser orientadas pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima.
A ordem e o progresso
É por isso que os nossos tetravós positivistas tentaram a síntese da Ordem e progresso, onde a primeira ideia foi bebida por Comte nos contra-revolucionários Bonald e Maistre e a segunda, a ideia de progresso, nos revolucionários Condorcet e Saint Simon. E assim nasceu o verde dos símbolos nacionais luso-brasileiros, bem como a nova ciência arquitectónica da sociologia, essa ideologia dita ciência, a que os filhos bastardos dos marxistas deram o nome de história, como a luta de classes na teoria, agora dita globalização anti-globalização, pelo internacionalismo aggiornato dos nossos tradutores de Immmanuel Wallerstein, que, quando não são elevados a pensadores oficiosos do regime, são os quase monopolistas dos subsídios estaduais para a investigação em ciências sociais e, quiçá, os futuros grandes-avaliadores do que geraram.
O bem comum
Acontece que, sobre a ordem, outras teses foram emergindo, como a dos eternos neotomistas e jusnaturalistas, para os quais qualquer sociedade política tem que ser entendida como a união estável de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, fim esse dito bem comum, e que teria de ser definido como a síntese da ordem e da justiça.
Para que a polis volte a ser a orgânica unidade de ordem e não a organicista unicidade substancial, onde o todo não é a totalitária fusão unidimensional das partes componentes do mesmo, um totum continuum, ou simpliciter unum. A unidade política, do ex pluribus unum, sempre foi unidade na multiplicidade, uma essência apenas relacional, uma mera unidade de relação.
A procura do melhor regime
Outros, contudo, ainda mais neoclássicos, ainda mais perto das ideias greco-romanas, até voltam a Platão e Aristóteles, proclamando a necessidade de se permanecer na procura do melhor regime, da ordem política certa, da boa sociedade, como Leo Strauss.
Não faltam sequer os que assinalam a circunstância de, em civilizações cosmológicas, a ordem aparecer como um microcosmos, enquanto, em civilizações antropológicas, a mesma nos surgir como uma espécie homem em ponto grande, um macro-anthropos.
A homologia do sagrado e do profano
Ainda outros referem a homologia do sagrado e do político, como Georges Balandier, porque os dois conceitos são regidos por uma terceira noção que os domina: a de ordem ou de ordo rerum.
Mas, infelizmente, a homologia em causa, continua a ser traduzida nesta pequena casa lusitana, do pensar baixinho, como um sincrético, ora catolaico, de inspiração puritano-oxfordiana, ora laicomarxiano, com muitos bloqueios de progressismo mediático e algumas homílias de telepoder, com arrependidos ou bem-pensantes.
A ordem das coisas
Em qualquer uma das posturas neoclássicas referidas, a ordem é sempre um dever-ser que é, um transcendente situado, axiológico-normativo, algo que se procura, mas que não se atinge, onde o máximo possível de perfeição, realizável pela conversão interior dos homens de boa vontade, é a imitação da ordem universal, chame-se-lhe mão de Deus, ou mimese face ao cosmos, como salienta o próprio Habermas, depois de largar as algemas da metodologia marxiana.
A dupla dimensão das coisas políticas
Com efeito, a política é sempre uma espécie de rosto com duas faces. De um lado, temos as forças, os poderes, e os consequentes confrontos entre esses elementos fácticos. Do outro, temos as ideias, os valores. E entre esses dois lados, estende-se todo um espaço de troca dialéctica entre as forças e os órgãos criados pelo homem.
A política tem pois uma dupla dimensão. Tanto é um campo de forças como um campo de lutas simbólicas, conforme as palavras de Pierre Bourdieu.
Onde os factos do poder procuram inserir-se estrategicamente num quadro estrutural. Onde procura institucionalizar-se o poder, para utilizarmos palavras de Georges Burdeau, promover-se a união entre a força e o órgão, transformando o poder numa força organizada, encontrando-lhe um lugar mais alto onde ele se acumule e, a partir do qual, possa distribuir-se, seguindo o tema dominante nas teses sistémicas de David Easton.
Podemos assim concluir que a ordem tanto não é o mero ordinalismo da paz dos cemitérios, como não se reduz ao hipostasiado juridicismo.
O direito como consequência da sociedade
Recorrendo ao "austríaco" Eric Voegelin, podemos, aliás, dizer o exacto contrário. Que o direito é mera consequência da sociedade, isto é, que a ordem jurídica deriva da ordem da sociedade.
Até porque a ordem da sociedade provém de um todo maior e anterior à mesma, a ordem do mundo (kosmos), que se identifica com a própria ordem do ser, a tal ordem verdadeira e primordial, aquele antes que é um superior e que, como padrão e ideia regulativa, não pode deixar de ser o fim para que se tende. Logo, até o processo de criação do direito visa garantir a substância da ordem na sociedade, obedece a algum que sendo metajurídico, nem por isso deixa de estar positivado, posto na cidade dos homens.
A natureza das coisas
Assim, podemos retomar o sentido platónico e aristotélico da natureza das coisas, mesmo que lhe demos o mais filosofante e contemporâneo título de natur sachen Porque a ordem verdadeira é quase o mesmo que a politeia de Platão, a polis melhor ou a ordem perfeita, pouco diferindo da boa sociedade de Aristóteles ou do bem comum de São Tomás de Aquino.
A verdadeira ordem é o melhor regime da polis, a ordem perfeita, a ordem justa, estando tão próxima da grande sociedade de Adam Smith quanto das regras de conduta justa de outro "austríaco", Hayek.
Neste sentido, o direito é parcela de um todo bem mais complexo, onde a hierarquia é outra. Começando de baixo para cima, temos o mero ordenamento jurídico, dependente da ordem da sociedade, e estes dois níveis, superiormente marcados pela ordem verdadeira.
Dos projectos empíricos à ordem verdadeira
Neste sentido, as normas talvez sejam meros projectos de realização da ordem, embora deva distinguir-se entre os projectos que pretendem ser realizados empiricamente, numa sociedade em concreto, daqueles outros que apenas visam estabelecer padrões de ordem verdadeira, sem expectativas quanto à sua realização em concreto.
Os primeiros, ligados aos chamados reformistas sociais, traduzem-se normalmente no processo de criação do direito em sentido técnico.
Os segundos pertencem a outro nível e têm a ver com a procura da ordem levada a cabo pelos filósofos: essa realidade viva na alma do filósofo, tornada consciência nítida pela recusa do filósofo em sucumbir à desordem do seu ambiente, para continuarmos a citar Voegelin.
O direito com a anti-utopia
E esta procura nada tem a ver com a pretensa construção das utopias, até porque os filósofos podem ser bem mais realistas que os próprios governantes. Até porque a ordem estabelecida pelo aparelho de poder até pode ser uma efectiva desordem.
Neste sentido, o próprio direito, enquanto dever-ser que é, enquanto transcendente situado, é resultado do processo auto-constituinte de uma determinada sociedade, é parte do processo pelo qual a sociedade se dá a si mesmo existência e se preserva a si mesma em existência ordenada. Porque tem de ligar o homem à sociedade, ao Mundo e a Deus, exigindo que se entenda o respectivo processo de criação como uma recolha e uma descoberta da ordem verdadeira. Porque o homem experimenta uma obrigação de sintonizar-se com a ordem da sua existência, com a ordem do ser. Uma ordem que também pode ser descoberta com imaginação e experimentação, onde há tentativas e podem acontecer erros. Que requer aperfeiçoamento e tem de ser adaptada às circunstâncias mutantes.
Os símbolos e as ideias como elementos da realidade
Diga-se, de passagem, que, da realidade social, fazem parte não só os símbolos que a iluminam, mas também as ideias que traduzem uma consciência dessa mesma realidade social. Não reconhecer que estes elementos intangíveis fazem parte da realidade pode levar a que os chamados realistas se tornem até menos realistas que os alcunhados idealistas.
O dever
É nesta procura de adequação, da realidade com um projecto, que surge o dever, a tal tensão experimentada entre a ordem do ser e a conduta do homem, uma tensão paralela à que se estabelece entre a ordem verdadeira e a conduta empírica da sociedade. Assim, com base nestes princípios, Voegelin analisa o estabelecimento das linhas jurídicas dominantes na modernidade.
A soberania pré-absolutista
Na Renascença, com a emergência do conceito bodiniano de soberania, ainda entendida como mera soberania externa, surge um príncipe que se assume como representante da comunidade política, em luta contra o papado e o império. Contudo, esta soberania ainda não é absolutista, nomeadamente no plano interno, dado que o soberano para efeitos inter-estaduais tem um campo de actuação delimitado: os soberanos têm de garantir uma substância de ordem que não é obra deles. Com efeito, a soberania ainda não é a competência da sua competência, ainda não necessita de auto-limitação e as leis do príncipe estão num plano hierarquicamente inferior aos estratos cimeiros do direito divino e do direito natural, bem como das próprias leis fundamentais. As leis editadas por tal soberano são superiores ao costume e às decisões dos magistrados.
O soberanismo absolutista
Só a partir de Thomas Hobbes e do absolutismo surge a soberania interna, ou intra-estadual, uma verdadeira soberania absoluta que se aplica a nível interno, unidimensionalizando as comunidades pelo rolo compressor da obediência. Surge assim um soberano, onde tudo aquilo que ele diz tem valor de lei (quod princeps dixit legis habet vigorem) e que não está submetido a nenhuma ordem superior, nem mesmo à lei que ele próprio edita (princeps a legibus solutus).
E tudo se concebe em nome da segurança interna, a salus populi que ultrapassa o próprio desvario da maquiavélica razão de Estado e passa a conceber que a paz, num mundo de homens lobos dos homens, não passa de uma mecanicista ausência de guerra, gerada pela força das potências e dos Estados em movimento na balance of power..
A desintegração positivista
Finalmente com o chamado secularismo e a desintegração da filosofia, nos séculos XIX e XX, principalmente a partir dos positivismos, é que se afasta da teoria jurídica a questão da ordem substantiva. Surgiria então uma distinção entre a jurisprudência normativa, defensora das regras válidas, e a jurisprudência sociológica, que põe o acento tónico no acto de criação de regras válidas.
Se no primeiro campo se enquadra a teoria pura de Stammler e Kelsen, com a identificação entre o direito e o Estado, para afastar o direito da sociologia e da ideologia, já no segundo campo se inserem as várias tentativas de uma sociologia do direito e das subsequentes escolas sociologistas. E como observa Voegelin, antigo assistente de mais um "austríaco", Kelsen, em nenhum destes processos mentais há preocupação com a procura da ordem verdadeira, pelo que a natureza do direito como a ordem substantiva da sociedade não se tornará objecto de análise.
Aquilo que sobre converge
Poderemos dizer que a ordem política não é simples produto do homem como animal naturalmente gregário, mas antes a consequência do homem como animal racional. Onde o racional não é antinomia face ao natural, mas algo que emerge dele, no sentido de que aquilo que sobe converge, conforme o lema de Teilhard de Chardin.
Cultura
Seguindo a teorização de Friedrich Hayek, diremos que se há uma ordem que deriva da natureza – o que os gregos designavam por physis e que os romanos traduziram por naturalis –, há também uma ordem que foi acrescentada à natureza, algo que foi posto ou cultivado sobre a natureza – aquilo a que os romanos chamavam o positivus e a que hoje damos o nome de cultura.
A evolução espontânea
Só que a ordem acrescentada, tanto foi produto da intenção dos homens como consequência da acção dos homens. São os homens que fazem a história, mas sem saberem que história vão fazendo.
Com efeito, se há uma ordem acrescentada à natureza de forma exógena, uma ordem confeccionada, artificial, há uma outra ordem que à natureza foi acrescentada, mas de carácter endógeno. Uma ordem autogerada pelo tempo, uma ordem acrescentada, mas espontânea, uma ordem constituída por aqueles fenómenos que não são moldados por uma vontade humana intencional, que são independentes de qualquer objectivo prévio, que não fazem parte de um qualquer plano de construção.
Dentro da ordem exógena, da ordem que resulta da intenção dos homens, aquilo que os gregos chamavam táxis, se há uma parcela que resulta da decisão deliberada (thesis), uma ordem que inclui, nomeadamente, as regras de organização, como as que definem a organização do poder, há também uma parcela que surge das convenções ou costumes (nomos).
A sociedade aberta
Já a ordem endógena, que se aproxima do conceito de grego de kosmos, seria um género de ordem marcado por aquilo que Hayek chama regras da conduta justa, visando a grande sociedade, sonhada por Adam Smith, ou a sociedade aberta de ainda outro "austríaco", Karl Popper.
Os tais fenómenos resultantes da acção do homem, mas não da sua intenção, conforme as palavras de Adam Ferguson, o pai-fundador do moralismo escocês e recuperador do liberalismo clássico. A tal ordem onde o homem é levado, por uma mão invisível, a apoiar um objectivo que não fazia parte da sua intenção, segundo as palavras de Adam Smith, aplicadas ao comércio internacional. Aquela ordem com regras, onde o homem, segundo Hayek, através de meios não desejados por ele, nem projectados por ninguém, é levado a promover resultados que, de maneira nenhuma, fazem parte das suas intenções. E que nunca se confundiu com o libertário anarquista de certos neoliberais, pouco dados às regras e à própria ética.
Os princípios de política
Essa ordem é aquela que está para além dos ordenamentos estudados pelo jurista, aproximando-se daquilo que o economista também procura e que a moral, enquanto ciência dos actos do homem como indivíduo, do mesmo modo, tenta expressar, equivalendo ao que os autores do século XVIII qualificavam como princípios de política.
Aquele interesse comum da humanidade que tanto guiaria a obrigação que constrange, o direito, como a virtude, que apenas aconselha e persuade, a moral, conforme Kant.
Aquilo a que Hegel dava o nome de ethos, uma terceira categoria hierarquicamente superior à moral e ao direito
As regras que fazem a própria sociedade
Talvez haja esse tal tipo de ordem que, em vez de ser produto das regras feitas pela sociedade, é a produtora da própria sociedade, equivalendo às tais regras que não são feitas pela sociedade, mas que, pelo contrário, fazem a própria sociedade. As tais regras que não conhecemos completamente, a tal orientação vital que as leis formais das organizações dos homens podem violar e que têm sanções automáticas a que não podemos esquivar-nos.
Política, moral, religião e direito
Neste sentido, as coisas políticas são paralelas às coisas da moral, da religião e do direito. Aliás, no sincretismo genético da polis grega, não havia distinção entre essas ordens normativas da realidade, de tal maneira que as primeiras reflexões sobre a política são marcadas pela procura da virtude englobante de todas elas, a justiça, simbolizada por uma mulher, a deusa Dike, filha de Zeus e de Thémis, que, de olhos abertos segurava, na direita, uma espada, e na esquerda, uma balança de dois pratos, mas sem fiel. Essa mesma deusa a que os romanos deram o nome de Justitia, vendando-lhe os olhos e passando a fazer depender a balança de um fiel.
As coisas políticas, as coisas da religião e as coisas do direito, todas procuram uma ordem comum, a ordem que se opõe ao caos, um equilíbrio que sempre precisou de uma espada e de um fiel, para poder ser harmonia ou mistura de contrários. Porque nunca houve, em concreto, nenhuma sociedade dos filhos de Adão em que todas as regras fossem espontaneamente cumpridas, porque, desde que os deuses deixaram de ser pastores do rebanho humano, sempre foi precisa uma heteronomia, um poder entendido como a mistura da força com ideias, capaz de punir o prevaricador, para que a coacção e a forma passassem a ser as irmãs-gémeas da liberdade.
A anti-razão ao serviço da razão
Com efeito, para socialmente vivermos e convivermos parece não bastar uma simples ordem de consciências, uma qualquer conjugação de boas intenções nascidas da autonomia de cada um. Sempre foi necessário o recurso a uma ordem exterior às autonomias, às vontades interiores de cada um, sempre foi preciso o recurso a uma heteronomia, à anti-razão ao serviço da razão, segundo as palavras de Jean Lacroix. Embora também sempre se tenha proclamado que essa heteronomia teria de ser serviçal tanto de uma ordem interior ou imanente à colectividade como de uma ordem superior, produto da racionalidade ou da divindade e, por isso mesmo, entendida como o exacto contrário da heteronomia.
O que é uma norma?
As colectividades dos homens sempre precisaram de um padrão superior que medisse a variedade. Sempre foi preciso um esquadro (norma), uma régua (regra) ou uma medida (cânon), um padrão, bem diverso da utopia (o sem lugar) e da ucronia (o sem tempo), que, não tendo que ser um objecto eterno e imutável, tem, contudo, que ser mais elevado e menos mutável que o próprio ideal conjuntural de uma determinada sociedade, ao contrário do dogma da escola histórica e do positivismo, para quem a perfeição não passaria de um mero segregado histórico, negando-se o humanismo activista, para quem não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história.
Um padrão que tem que ser uma razão que actua, uma razão que actua através do homem que actua, uma razão no tempo da história, uma exigência de perfeição para um dado momento da história e que, por isso mesmo, tem que ser um padrão progressivo, evolutivo, de conteúdo variável, esse qualquer coisa que nos permita justificar a esperança, chame-se direito natural, direito da razão ou justiça política.
A recta razão
Ao longo dos tempos, esse padrão foi objecto das mais variadas tentativas de explicação. Se há quem o faça remontar a ordens directas da divindade, ao estilo do código de Hamurabi ou das tábuas recebidas por Moisés, há quem o ligue a velhos e remotos costumes, a uma tradição que precisa de ser conservada por pontífices. Se há quem o confunda com a sabedoria registada pelos sábios antigos, há também quem diga que o mesmo tem a ver com um sistema de princípios filosóficos que exprimem as relações necessárias que derivam da natureza das coisas. Ou com as leis inscritas no coração dos homens.
Os menos preocupados chegam mesmo a identificá-lo com um simples corpo de acordos feitos entre os homens, enquanto outros persistem em considerá-lo como o reflexo da recta razão.
Mas há também quem o visione como mero conjunto de regras descobertos pela experiência humana, não faltando sequer os que o negam, dizendo que tudo não passa de um ditame das classes dominantes ou dos mais fortes, económica ou socialmente.
A harmonia
A vida em sociedade não é nem uniformidade nem unidimensionalidade. A ordem não é uma planura desértica, mas uma cordilheira de irregularidades e de diferenças, onde a regularidade e o normal são precisamente os irregulares e os anormais, segundo a perspectiva daqueles que apenas sabem pensar a uma só dimensão, sem perceberem os nichos e os acasos.
A sociedade não é mera agregação de átomos, onde o conjunto é apenas somas das partes, como num montão de areia. A sociedade são muitas sociedades, é uma unidade de ordem, uma coordenação de moléculas, uma estrutura estratificada, onde a ordem é apenas uma espécie de desordem organizada ou de anarquia ordenada, uma coordenação de elementos dispersos, uma concórdia dos discordes, onde, em vez da disciplina unidimensional, predomina a harmonia. Onde, em vez de um bloco monolítico hierarquista, tenta imitar-se o pluralismo e a flexibilidade da harmonia cósmica.
Os valores
Com efeito, viver é optar permanentemente por valores, por padrões que não são algo de subjectivo ou de arbitrário, também não estão completamente desligados da realidade.
Viver é realizar fins, isto é, valores racionalmente reconhecidos como regras de conduta.
Seguindo a lição de Miguel Reale, até podemos dizer que os valores não estão separados da existência. Eles não existem por si mesmos, não são realidades absolutas, apenas valem, apenas são realidades relativas. E só valem quando assumem a dimensão do interesse geral, quando são reconhecidos pela comunidade onde se aplicam.
Primeiro, porque só se objectivizam através da subjectividade, quando a intimidade da nossa consciência os torna objectivos, não estando constituídos antes de se subjectivarem.
Segundo, porque todos os valores são bipolares, dado que qualquer coisa que vale, pode também não valer, havendo, para cada valor positivo, um valor negativo; por outras palavras, cada valor tem sempre um contra-valor ou um desvalor, tal como cada regra é sempre susceptível de violação: só o homem tem regras porque só o homem pode não cumprir as regras.
Terceiro, porque os valores se implicam reciprocamente, dado que nenhum deles se realiza sem a realização dos restantes.
Quarto, porque os valores se ordenam e graduam segundo uma hierarquia, uma escala de valores.
Entre o horizontal e o vertical
A partir desta perspectiva de relativismo pouco céptico de anti-utilitarista, podemos dizer que, como todas as realidades referidas a valores, também as coisas políticas têm uma estrutura horizontal, dado que mantêm relações com o ambiente e com o próprio passado, e uma estrutura vertical, pois desenvolvem-se no tempo, têm uma duração, nascem, crescem e morrem.
Quem aceitar esta perspectiva relativista, quem reconhecer que a existência histórica é, acima de tudo, uma criação e uma afirmação de valores, não pode deixar de aceitar que os valores constituem uma das parcelas do objecto material da ciências política, não pode deixar de reconhecer que são os valores, por exemplo, que nas coisas políticas geram a auto-suficiência de uma perfeição (v.g. a soberania), a identidade cultural (v.g. a nação) e a ordem concreta (v.g. o Estado).
Sem os valores, a ordem política não passaria de mera facticidade, não possuindo sentido nem íntima ordenação. Com os valores a ordem política passa a ser uma espécie de dinâmica de distintos à procura de harmonia, onde as bipolaridades e as antinomias são exigências vitais.
Na verdade, são os valores que dão à ordem política aquela aura de crise e de problema que tornam possível a interiorização da polis, transformando a política numa quotidiana opção por valores que se impõe a cada cidadão. Por exemplo, a tradicional antinomia entre a segurança e a justiça, entre a salus populi, suprema lex e a justitia, fundamenta regnorum, constitui um daqueles desafios permanentes que combatem a inevitável tendência de cada um para a apatia.
São os valores que tornando irrealizável a democracia, obrigam a que, na prática, tenha de procurar-se, por isso mesmo, a procura da realização da justiça.
São os valores que exigem que a razão não seja apenas a razão calculista, a técnica dos rácios, do cálculo dos custos e benefícios, mas antes uma razoabilidade valorativa.
A justiça política
A ordem, a taxis dos gregos, a ordo ou ordinatio dos romanos, o conjunto das regras que distribui e regula as diversas funções de autoridade, incluindo aquela que é a mais elevada, a suprema magistratura, que tanto pode ser detida por um só, por poucos ou por muitos.
A polis emerge assim como uma realidade cultural acrescentada ao cru da natureza, como uma ordem artificial, uma invenção dos homens, um poder-ser que se projecta em dever-se, um dever-ser que, por isso mesmo, pode não ser, porque uma coisa cultural é aquilo que deve-ser e não é, tornando-se, por essa razão, em coisa prática.
II
ENTRE RAMBO E KANT
É com base nestes princípios que começamos por subscrever o citado discurso do Presidente George W. Bush, ao reclamar a coincidência entre a filosofia da república americana e as bases da velha Europa, de matriz greco-romana, estóica e, depois, cristã, antes de voltar a ser aristotélica e de se volver em liberal e democrática, para a construção do Estado de Direito universal: We believe in open societies ordered by moral conviction. We believe in private markets humanized by compassionate government. We believe in economies that reward effort, communities that protect the weak and the duty of nations to respect the dignity and the rights of all.
Neste sentido, reconhecemos que só pode haver ordem, se não perdermos a ideia de termos a mission in the world beyond the balance of power or the simple pursuit of interest.
Apenas discordamos da codificação dos princípios de tal missão civilizacional, porque se President Wilson had come to Europe with his 14 points for peace eis que God himself had only 10 commandments…
A velha ordem internacional
A velha ordem internacional, nascida da Carta do Atlântico (14 de Agosto de 1941), e das conferências de Bretton Woods (22 de Julho de 1944), Yalta (4 a 11 de Fevereiro de 1945), São Francisco (concluída em 26 de Junho de 1945) e Potsdam (Julho a Agosto de 1945), essa que fez os julgamentos de Nuremberga, contra os nazis, mas amnistiou o massacre de Katyn, a favor dos estalinistas, e que se consolidou pela chamada Guerra Fria, se foi simbolicamente derrubada pela queda do muro, em 1989, porque se reproduziu mentalmente pelo securitário do medo, ainda não nos permitiu lançar suficientes sementes de esperança para uma nova orgânica internacional.
O impossível direito internacional público
Porque se mantém em vigor um modelo de direito internacional público que talvez ainda não tenha suficiente justiça para ser efectivo direito, o mínimo de autodeterminação para ser inter-nacional, nem uma altura adequada de fins para ser público. Por outras palavras, a nova ordem ainda não pode ter um mínimo de justiça mundial, porque o direito que a convoca e pensa reger tanto não é suficientemente válido, como lhe faltam os adequados requisitos da vigência e da eficácia, as três dimensões do jurídico indispensáveis para que a justiça não seja impotente.
Neste sentido, temos de concluir que, por enquanto, estamos condenados a continuar a viver em regime de vazio de justiça mundial.
A paz dos vencedores
A tal ordem a que chegámos depois de 1989, à imagem e semelhança da que a precedeu, apesar de longos intervalos de paz imperial, ainda não obedece aos mínimos civilizacionais da chamada paz pelo direito. Ela ainda não é suficientemente polida ou civilizada, ou, dito por outras palavras, ainda não é marcada pelos fins superiores que levaram os homens a constituir uma polis, ou uma civitas. Aquilo que, no plano interno dos Estados, se conseguiu com o chamado Estado de Direito, isto é, o reforço da institucionalização do poder que nos fez superar o estádio da vingança privada, ainda não marca o pulsar das relações entre os Estados, dado que estes continuam a gostar de viver em regime de estado de natureza.
Falta uma justiça mundial porque os poderes mundiais, que têm vigência e eficácia, ainda não são dotados de validade, dado não interiorizarem o direito como fundamento e como forma de limitação.
A necessária justiça mundial
Neste sentido, esta ordem internacional ainda é ditada pelo regime da paz dos vencedores, onde tem razão quem vence e onde não vence necessariamente quem tem razão. Logo, o day after aos pretensos tratados de paz, ou de limitação de armamentos, tem mais a ver com a razão da força do que com a força da razão. Daí que a ordem internacional quase se aproxime de uma desordem bem organizada, da anarquia madura, distanciando-se qualitativamente daquela que é a institucionalização do poder de uma polis, de uma civitas ou de um Estado de direito.
Os três pilares de Bush
Compreendemos, pois, a razão que levou o Presidente George W. Bush, a larger a postura "cowboy" de Rambo e a peregrinar Locke, talvez antes de chegar a Kant. Por enquanto, ainda nos diz apenas que:
The peace and security of free nations now rests on three pillars. First, international organizations must be equal to the challenges facing our world, from lifting up failing states to opposing proliferation.
The second pillar of peace and security in our world is the willingness of free nations, when the last resort arrives, to retain aggression and evil by force.
The third pillar of security is our commitment to the global expansion of democracy and the hope and progress it brings as the alternative to instability and hatred and terror.
O vazio mundial de justiça
É pouco. Precisávamos, em primeiro lugar, de uma ideia de justiça universalmente consensualizada, capaz de mobilizar uma força institucionalizada que a tornasse independente. Por outras palavras, precisávamos que a política deixasse de obedecer às razões de Estado e passasse a ser pautada por um Estado razão.
Foi isto que proclamou Kant nos finais do século XVIII, onde, contrariamente a algumas leituras pietistas, voltou a proclamar-se a necessidade clássica de uma juridificação do poder ou de uma moralização da política. Para que os Estados não fossem apenas criadores, mas também objectos do direito.
E não foi por acaso que em 1995, no bicentenário da ideia kantista da chamada paz perpétua, dois dos principais teóricos políticos da actualidade vieram a terreiro, glosando tais ideias. De um lado, John Rawls (1921- ), com uma proposta de regresso ao direito das gentes em The Law of Nations. Do outro, Jürgen Habermas (1929-), com uma releitura Des ewigen Friedens. Tal como, antes, João Paulo II, na Centesimus Annus, de 1991, retomava as teorias da comunidade internacional de Vitória e Suárez.
Porque sempre admitimos que há actos de violência menos violentos do que certos estados de violência. E até tratámos de também nobelizar antigos terroristas feitos homens de Estado. Fiéis àquela hipocrisia que continua a não deixar comunicar a política, a moral e o direito, quando importa encontrar um fundamento espiritual para a ordem mundial. E a única via que nos permitirá vencer a violência desta paz dos vencedores, aliás bem próxima da paz dos cemitérios, e instaurar a paz pelo direito.
Ainda não chegámos ao fim da história
A paz dos vencedores, essa que admite o Estado como lobo-do-Estado, onde até a comunidade internacional não passa de uma guerra de todos contra todos, contradiz a realidade de um mundo novo, surgido daquilo que alguns teorizam como a revolução global. Afinal, mesmo depois do 11 de Setembro de 2001, o tal gnóstico fim da história não passou de um mero regresso da história
Neste sentido, voltamos a citar Bush:
We cannot rely exclusively on military power to assure our long-term security. Lasting peace is gained as justice and democracy advance. In our conflict with terror and tyranny, we have an unmatched advantage, a power that cannot be resisted, and that is the appeal of freedom to all mankind. As global powers, both our nations serve the cause of freedom in many ways in many places. By promoting development and fighting famine and AIDS and other diseases, By working for justice By extending the reach of trade The movement of history will not come about quickly. Many governments are realizing that theocracy and dictatorship do not lead to national greatness; they end in national ruin. It is suggested that the poor, in their daily struggles, care little for self-government, yet the poor especially need the power of democracy to defend themselves against corrupt elites. We will encourage the strength and effectiveness of international institutions. We will use force when necessary in the defense of freedom. And we will raise up an ideal of democracy in every part of the world. On these three pillars we will build the peace and security of all free nations in a time of danger.
A banalização do mal
Aliás, a hiperviolência concentrada, que parecia ser monopólio dos Estados, conforme a clássica tese de Weber, está definitivamente fragmentada, como o demonstrou o ataque de Bin Laden às Twintowers de Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001.
Com efeito, segundo contabilidades seguras, haverá hoje cerca de 25 Estados com capacidade para a utilização de mísseis balísticos, os quais poderão levar consigo armas químicas ou bacteriológicas, nessa suprema banalização do mal, onde não compensará trancarmos as portas do crime, depois de termos a casa arrombada.
E uma das principais hipocrisias mundiais, porque os que mais discursam sobre a paz têm tido a garantia de uma espécie de benefício do infractor. Aliás, a corrida armamentista era inevitável, principalmente quando cento e tal novos Estados se institucionalizaram quase ex nihilo. Porque os mesmos, antes de assegurarem o bem-estar ou a justiça, foram condenados pelas circunstâncias a terem que começar pelo poder nu da chamada segurança, dando corpo a aparelhos militares e policiais, para onde mobilizaram grande parte dos escassos recursos que tinham disponíveis.
A globalização, se impediu aquilo que muitos consideravam a inevitável Terceira Guerra Mundial, essa guerra entre grandes Estados, não deixou de manter a perturbadora ausência de uma paz pelo direito, a peace trough law de Hans Kelsen que, tão magistralmente, foi secundada na nossa escola por antecessores meus.
Hoje, se apenas os Estados Unidos e a China podem sustentar um tal tipo de guerra inter-estadual, de dimensão mundial, eis que aumentaram as possibilidades de conflitos regionais, dado que, a este nível, surgiram novas potências. É o exemplo de um potencial conflito entre a China e Taiwan, ou entre a Índia e o Paquistão.
Acresce que, além dos Estados, surgiram novas entidades capazes de intervenção bélica, como associações criminosas internacionais e movimentos fundamentalistas ou etnonacionalistas, de paradoxal dimensão trans-estadual, os quais tratam de instrumentalizar o próprio terrorismo que até pode ser controlado por redes difusas, como foi demonstrado pelo ataque às Twin Towers, sustentado por uma al qaeda, cujos santuários passavam pela grande finança ocidental.
De qualquer maneira, a luta contra a guerra, com o consequente desarmamento, só é possível se vier a estabelecer-se um sistema comum de segurança que passe a proclamar que não são apenas todos os Estados que têm direito à segurança, mas também todos os povos, pelo que tem de ser interpretado de outro modo o direito à não ingerência dos assuntos internos dos Estados existentes.
Só a partir de agora Kant deixou os domínios da metafísica e se transformou num realista. Porque se é verdade que cada grupo humano só ganha consciência de si mesmo quando consegue estabelecer uma fronteira com o outro, levando à sobrevalorização da ameaça vinda de fora, como principal elemento de desintegração, só neste nosso tempo é que surgiu uma ameaça global e, consequentemente, só agora é que os homens começaram a interiorizar a necessidade dessa Weltrepublik, com o realismo do sonho a poder vencer a anarquia que, de tão madura, ameaça apodrecer.
Talvez importe vislumbrar alguns dos sinais dos tempos que a hiper-informação da aldeia global oculta. Talvez importe tentar penetrar na constelação causal das nossas circunstâncias, a fim de conseguirmos detectar as correntes profundas da história que nos arrastam. As lentes imediatistas, utilizadas pelos analistas do curto prazo, descrevendo, com os mais pormenorizados zooms das reportagens directas, as árvores da nossa floresta, quando não a casca ou um pedaço de folha, não nos têm deixado perspectivar a própria floresta, coisa que apenas se consegue pela técnica da compreensão e pelo clássico método científico que impõe que se procure substituir a opinião pelo conhecimento.
Somos dos que gostariam de subscrever o Projecto da Paz Perpétua de Kant e até de participar na elaboração de uma lei universal que colocasse a guerra fora de direito, declarando-a como o inimigo público número um de toda a humanidade. Mas sabemos, de experiência vivida e pensada, que em nome dessas ilusões, Woodrow Wilson (1856-1924), com os seus 14 Pontos e o Pacto Briand-Kellog, não impediram que, depois da Grande Guerra de 1914-1918, se tivessem acirrado aqueles ressentimentos que conduziram à Segunda Guerra Mundial, assim se demonstrando que muitas das principais causas do inferno são as boas intenções sem força.
O direito é mais precioso do que a paz
Por isso é que, parafraseando Wilson, consideramos que a boa ordem internacional, se não funcionar, teremos de a fazer funcionar. Não diremos, como Aristide Briand (1862-1932), que a paz vem antes de tudo, a paz vem até antes da justiça. Preferimos, o dito do mesmo presidente norte-americano, para quem o direito é mais precioso do que a paz, desde que entendamos a justiça como a mãe do direito.
Com efeito, se temos os olhos postos no céu dos princípios de uma paz pelo direito, também sentimos os pés presos ao chão da realidade dos homens concretos. Embora acreditemos não ser utopia a constituição de uma organização universal que consiga estabelecer, na comunidade internacional, um estádio semelhante àquele que no interior dos Estados já foi atingido, com o Direito a superar a vingança privada, apoiado no monopólio da força física legítima, julgamos que só dentro de um longo prazo, que poderá ser de séculos, poderemos banir a guerra e estabelecer a necessária paz pelo direito.
Até o tradicionalista espanhol Álvaro d’Ors vem defender um regionalismo funcional, a superação da actual estrutura estadual tanto por organismos supra-nacionais (ad extra), como por autonomias regionais infra-nacionais (ad intra), com uma ordem internacional baseada no princípio da subsidiariedade.
Os novos sinais dos tempos
Podemos não ter chegado ao almejado fim da história, mas assistimos a uma radical mudança, onde se detectam, entre outros, os seguintes sinais políticos dos tempos:
Em primeiro lugar, com o findar da Guerra Fria e com os sucessivos acordos entre norte-americanos e russos, tornou-se um facto consumado a abolição da guerra entre os principais centros estaduais de poder.
Em segundo lugar, deu-se a inequívoca emergência de um novo centro mundial do poder estadual: o conglomerado das unidades políticas ocidentais, com ramificações mundiais, assentes numa vasta rede de instituições internacionais, lideradas pela ONU, que redobraram a legitimidade da ordem internacional.
Em terceiro lugar, incrementaram-se modelos democráticos, entendidos à maneira ocidental, que se tornaram numa espécie de símbolo do desenvolvimento político.
Em quarto lugar, emergiu um outro direito internacional, assente em novas instituições, como os tribunais internacionais especiais, destinados aos julgamentos dos crimes de guerra e genocídio sobre o Ruanda e a Jugoslávia.
A falta de um Estado de direito a nível universal
Pode, pois, concluir-se que o direito positivo internacional não conhece qualquer tipo de definição universal de Estado e, muito menos, qualquer identificação rigorosa quanto aos padrões mínimos de um Estado de Direito ou de uma democracia.
Isto é, o principal sustentáculo da nossa ordem internacional acaba por ser uma nebulosa crença, dependente do movimento das ideias, algo que flutua ao sabor das vagas doutrinárias dos mestres intelectuais e das vulgatas dos comunicadores, na sua relação directa com a opinião pública. Infelizmente, neste nosso tempo de certezas científicas, os homens ainda não conseguem entender-se quanto a uma noção mínima da matriz institucional susceptível de lhes propiciar uma relação estável.
III
A ANGÚSTIA DOS PRETENSOS REALISTAS
A escola que escreve os discursos do Presidente George W. Bush e que, entre nós, apesar de algum colorido vocabular dos receptores, continua a ser a perspectiva dominante da pretensa cientificidade da política internacional, considera que o direito internacional, apesar de ser um limite ao poder, não é a chave da política internacional, nem o único pilar da ordem internacional, dado que os reais interesses em jogo impediriam a generalizada observância das regras do direito nas relações entre os Estados. Assim, trata de socorrer-se dos métodos da política internacional, praticando a análise a partir das relações de poder (power politics), o estudo das constantes do comportamento (behavioral methods), reclamando o monopólio das técnicas da ciência política.
Decisionismo
Neste sentido, a escola aproxima-se do modelo decisionista expresso por Carl Schmitt, para quem a essência da soberania está na decisão em caso de excepção, naquela decisão-limite onde a ordem deixa de assentar numa norma. Também os realistas norte-americanos não reparam que esse anormal acaba por tornar-se o normal, dado que a excepção se transforma em regra e o provisório em definitivo, mas assente num definitivamente provisório.
Powerpolitics
O elemento central das teses de Morgenthau está, aliás, na respectiva definição de política de poder (power politics), entendida como uma relação psicológica entre dois pólos, onde, do lado activo, está aquele que o exerce e, do lado passivo, aquele sobre quem o mesmo é exercido.
Tal poder também se distinguiria tanto da mera influência como da força, entendida como violência. Até haveria uma distância entre o poder que se usa e o poder que não se usa, bem como um poder legítimo, o chamado poder moral, e um poder ilegítimo, qualificado como imoral.
Para o fundador da escola, o mundo, imperfeito como é de um ponto de vista racional, é o resultado de fontes inerentes à natureza humana e que há leis objectivas que têm as suas raízes na natureza humana (1955, intr.).
Aliás, quando utilizamos a palavra poder, para traduzir power politics, subscrevemos uma imensa confusão, porque apenas pensamos em Machtpolitik, naquilo que Kant entendia como potentia, isto é, com o poder do Estado na sua relação com outros Estados, esquecendo que o mesmo Estado também é res publica, quando tem por liame o interesse que todos têm em viver no estado jurídico, e gens, quando se pensa numa hereditariedade, seja da origem nacional, seja da própria união hereditária, pré-política, como acontecia na Grécia, com a genos a preceder a polis.
O Estado é algo mais do que aqueles que lêem Morgenthau, sem compreenderem a diferença que Weber estabeleceu entre Macht e Herrschaft. O Estado talvez seja, ao mesmo tempo, comunidade, soberania e nação, isto é, república, para o Estado-Comunidade, principado, para o Estado-Aparelho, e comunidade de gerações, quando se pensa em Nação, para mantermos a célebre terminologia de Kant.
Pátria pode rimar com mundo
Seguindo Denis de Rougemont (1906-1985), é perigosa essa confusão. Porque se se misturam pátria, Estado e nação, ou espiritual, cultural e político, nos limites de uma dada fronteira, chegamos precisamente ao fim que se pretende evitar - o Estado totalitário. Na mesma senda, Wilhelm Röpke vem defender que a pátria pode rimar com o mundo, mas sem simpatizar com aquilo que considera o elemento intermediário, a nação: a pátria pode soar em harmonia com o mundo … o verdadeiro sentimento da pátria exige que não se exclua o maior, nem o menos.
As perspectivas realistas assentavam, aliás, num terreno cultural que havia sido semeado por autores como Reinhold Niebuhr (1892-1971), pastor protestante e professor em Nova Iorque e Yale, que veio fazer uma radical separação entre a moral individual e a moral dos Estados, salientando que esta é marcada pelo egoísmo, pelo interesse nacional e pela força. Porque há uma crescente tendência entre os homens actuais de se considerarem éticos porque delegaram os seus vícios em grupos cada vez maiores.
O perigo da razão de Estado
Por outras palavras, a escola realista, invocando o puritanismo desta ética protestante, distanciou-se das caricaturas maquiavélicas e quase repetiu os ditames da chamada razão de Estado cristã, expressos por Justus Lipsius (1547-1606), esse professor de Lovaina, autor de Politicorum, sive Civilis Doctrinae, com uma primeira edição de 1589, o manual da governação filipina, onde se faz a apologia de um Estado burocrático e forte, bem distante das teses então assumidas por um Desidério Erasmo (1469-1536) ou por um Juan-Luis Vives (1492-1540). Aí se considerava injustificável e absolutamente condenável a fraude política grande, como a perfídia e a injustiça, embora se admitissem duas outras formas. A fraude ligeira, como a desconfiança e a dissimulação, seria aconselhável a qualquer estadista. Já a fraude média, como a corrupção e o engano, entraria na categoria do tolerável. De assinalar que a primeira versão da obra ainda foi colocada no Index dos livros proibidos pelo Papa, em 1590, quando o autor ainda era protestante. Mas o mesmo, depois de convertido ao catolicismo, logo refaz o texto anterior, em 1596, fundando aquelas teorias que vão servir de literatura de justificação para beatérios autoritários do século XX.
Os maquiavélicos defensores da liberdade
Dava-se assim o regresso a uma nova forma de razão de Estado, recriando-se uma ética da responsabilidade, distinta da ética da convicção, porque os fins poderiam justificar os meios, numa lógica dita dos maquiavélicos defensores da liberdade, contra aquilo que se convencionou chamar o império do mal, o inimigo soviético.
Do poder dos sem poder à política antipolítica
Paradoxalmente, a viragem do mundo, concretizada no ano de 1989, foi a melhor demonstração da falta de realismo de uma teoria que, de tal qualificação, pretendia ter o monopólio. Porque o que liquidou o concentracionarismo soviético, nasceu, sobretudo, daquilo que Vaclav Havel assumiu como o poder dos sem poder, ou, para utilizarmos a terminologia do polaco Thadeusz Mazowiecki, de uma política antipolítica, marcada por um combate pela consciência onde importaria a fidelidade aos princípios morais fundamentais.
Afinal talvez haja que rever a ideia de Maquiavel, segundo a qual o Homem não faz o bem a não ser quando é pressionado pela necessidade. Depois, será de pôr em causa a nietzschiana perspectiva da Wille zur Macht, daquela vontade de poder pelo poder que faz um apelo ao vitalismo de certo homem de Estado, entendido como um homem de acção, dono de uma virtù que irradiaria sobre o conjunto dos outros seres humanos e que reduziria a vida a um movimento pelo movimento, numa velocidade que nos levou aos precipícios dos totalitarismo.
Uma ideologia pretensamente científica
Toda esta geração realista acaba por negar o próprio nome com que procurou qualificar-se, porque, dos factos, acabaram por extrair valores. Com efeito, ao tentarem uma política desligada da ética, acabaram por criar uma ética com fundamentos não éticos, formulando leis e máximas, a partir de factos, apesar de, paradoxalmente, considerarem que, dos princípios transcendentes, não poderiam extrair-se conclusões práticas.
Porque, como reconhece expressamente Raymond Aron, considerar o poder como o objectivo único ou supremo dos indivíduos, dos partidos ou do Estado, não é uma teoria no sentido científico da palavra, mas uma filosofia ou uma ideologia.
O realismo político, afinal, apenas gerou um novo rebaixamento dos fins da política, principalmente quando difundiu um conceito de estadista capaz de, em nome da responsabilidade do Estado, suspender as convicções, por admitir que os fins, considerados superiores, justificariam os meios inferiores utilizados. E não tardaria que, em nome da democracia, se protegessem autoritarismos antidemocráticos, invocando-se a luta contra um mal maior, o comunismo e o consequente totalitarismo do modelo soviético.
Contra o rebaixamento dos fins políticos
É a partir daqui que se estabelece o princípio da universalidade política, dado podermos encontrar todas as funções políticas em todos os sistemas políticos, incluindo os mais simples. Aliás, não existiria nenhuma sociedade que, para manter a ordem interna e externa, não tivesse uma estrutura política. Se nos sistemas mais simples, uma, ou poucas estruturas, cumprem todas as funções políticas, já em sistemas desenvolvidos há uma forte diferenciação, isto é, um grande número de estruturas, cada uma delas especializada numa determinada função política.
Com efeito, esta perspectiva salienta que, em todos os sistemas as mesmas funções se encontram necessariamente preenchidas e que, apesar de uma determinada estrutura tender a especializar-se numa determinada função, isso não significa que não possa exercer secundariamente outra (v.g. os tribunais, a quem cabe a função judicial de aplicação do direito, são também criadores do direito).
A ordem das ordens
A polis constitui a ordem das várias ordens normativas da realidade, aquele ser, aquele kosmos que se opõe ao não-ser, ao caos.
De facto, a ordem religiosa, a ordem moral, a ordem dos costumes, a ordem jurídica e a ordem da economia são apenas uma parcela da ordem das ordens.
Deste modo, só pode compreender-se o poder político através de uma perspectiva globalista e institucionalista.
Nestes termos, podemos dizer que o poder político, enquanto poder institucional, parte do pressuposto que toda a polis é uma iuris societas, que toda a polis tem um bem comum porque é uma instituição, porque é uma ideia de obra ou de empresa que se realiza e dura no meio social, segundo a tradicional definição de Maurice Hauriou.
O poder institucional aproxima-se do conceito de governo em sentido amplo. Porque governar é conduzir um determinado grupo a um determinado fim, tal como o timoneiro, usando o leme, conduz o navio para um determinado porto. Governar é, conforme a imagem de Karl Deutsch, pilotar o futuro, caminhar para determinados fins segundo determinadas regras.
Na verdade, dizer que existem regras e ordem, no caso do homem, significa dizer que as regras são constantemente ameaçadas pelo não cumprimento e que a ordem é sempre ameaçada de desordem. Não há, como assinala Lucy Mair, nenhuma sociedade em que as regras sejam efectivamente cumpridas e a sociedade existe precisamente para lutar contra a entropia que a ameaça de desordem, como reconhece Georges Balandier.
Saliente-se, contudo, que, se o poder político, enquanto poder institucional, faz parte da ordem da sociedade, se impõe que se fale em regras e em ordens, isso não pode levar-nos a considerar que só será possível tratarmos do poder de forma normativista ou partir do pressuposto que só a ciência do direito está apta a tratar do poder. Nada mais redutor.
Podemos estudar realidades normativas sem normativismo, tal como temos de estudar os valores de forma não valorativa.
As ordens normativas da sociedade não se reduzem à ordem jurídica. Ao lado, por cima ou e em comunicação com esta há outras ordens, desde a ordem religiosa à ordem moral. Na linha de Hayek, até podemos dizer que há uma ordem comum à política, ao direito e à economia, o cosmos em luta com o caos e com o construtivismo e o normativismo.
Para que os homens sejam homens de boa vontade, para que cresçam para cima e para dentro, dado que dentro das coisas é que as coisas realmente são!
Por
José Adelino Maltez*
Intervenção nas Jornadas de Relações Internacionais
ISCSP, em 26 de Novembro de 2003
Pedem-me, os meus queridos alunos de relações internacionais, desta nossa quase centenária escola, que olhe um pouco para o speculum da antiquada tese da "nova ordem internacional", tópico que chegou a ser moda no discurso dos grandes donos do poder mundial depois do ano 1989, quando alguns proclamavam a chegada do "fim da história", mas que, agora, depois do 11 de Setembro de 2001 e da intervenção norte-americana no feitiço das areias iraquianas, depois de já ter passado de moda, parece voltar a ser uma espécie de impossível lógico, quando, contra a ordem do terror, ainda continua por cumprir a urgente ordem da justiça, superadora da mera vingança privada da paz dos vencedores, essa nova versão de certa paz dos cemitérios, entendida como mero equilíbrio mecânico da restrita balança de forças, com que alguns qualificam a balance of power dos checks and balance.
Porque, contra a tese dos homens-lobos-dos-homens, onde o animalesco dos selvagens não pode ser apenas corrigido pelos selvagens com boas intenções, apenas resta o caminho e a verdade dos homens de boa vontade, com sede de justiça, essa eterna mãe da política e do direito, capaz de juridificar e institucionalizar o poder, ou de moralizar e civilizar a política.
Agradeço a honra do convite e recordo que esta tribuna propiciada pelos estudantes continua a ser a única via que me tem sido possibilitada para reflectir publicamente, no âmbito da minha escola, sobre a macropolítica das relações internacionais, dado que as minhas heresias teóricas nunca foram acolhidas nas páginas da quase inexistente revista do ISCSP e tem sido impossível penetrar curricularmente com estas "mostrengas" especulações no "curriculum" de uma licenciatura, onde as magnificências construtivistas continuarão a ser avaliadas tanto pelos criadores do dito como pelos próprios auto-avaliadores gestionários da criatura, em regime de conservadoríssimo círculo vicioso directivo, onde nem sequer se admite o conservadorismo do que "deve-ser", desde sempre decretinado pelo retroactivo do imobilismo como acto de traição...
Se me permitem exercitar o contra-poder da liberdade académica e reivindicar a minha qualidade de decano do grupo de ciências jurídico-políticas, obtido por concurso público, voltarei a recordar, aqui e agora, principalmente depois da partida dos soldados da nossa GNR para o Iraque, o primeiro artiguinho que publiquei sobre estas coisas de relações internacionais, ainda eu era um jovem estudante de Coimbra, em tempos de coice do Maio 1968, onde, pouco revolucionariamente, num clandestino jornal dito "Revolução", mas que estava no contra, em nome da mais sagrada revolta individual, assumia o trocadilho de existir uma espécie de "neo-feudalismo na anarquia ordenada".
Direi, novamente, de acordo com a perspectiva crítica de um neoclássico que não deixou de ser um velho liberal, para quem a tradição continua a ser um back to basics, num regenerador, ou revolucionário, regresso para seguir em frente, que a ordem mundial a que chegámos continua a ser uma desordem bem organizada e tentarei demonstrá-lo, recorrendo, em especial ao recentíssimo discurso do Presidente George W. Bush em Londres, datado de 20 de Novembro de 2003, onde o filho, repete algumas intenções de um pai que, no recato de uma sabedoria pouco dada a semear eucaliptos, não se tem tentado pelos activismos da aposentadoria intervencionista, porque acredita que depois dele não tem que vir o dilúvio.
I
A PROCURA DA ORDEM
Comecemos pelos princípios, porque in principio pode estar o fim, que potissima pars principium est, principalmente quando o nome não corresponde à coisa nomeada. Com efeito, ordem vem do latim ordine, isto é, disposição metódica das coisas regularmente classificadas, essa qualidade abstracta que gera o concreto ordenamento, o acto ou efeito de ordenar, coisa tão contraditória que tanto está na base da chamada ordem da bicada, que marca as sociedades animais, como pode gerar, entre os homens, aquilo que Fernando Pessoa qualificava como o preconceito da ordem.
A ordem legítima
Só que, como reconhecia Max Weber, toda a acção, especialmente a acção social e, por sua vez, particularmente, a relação social podem ser orientadas pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima.
A ordem e o progresso
É por isso que os nossos tetravós positivistas tentaram a síntese da Ordem e progresso, onde a primeira ideia foi bebida por Comte nos contra-revolucionários Bonald e Maistre e a segunda, a ideia de progresso, nos revolucionários Condorcet e Saint Simon. E assim nasceu o verde dos símbolos nacionais luso-brasileiros, bem como a nova ciência arquitectónica da sociologia, essa ideologia dita ciência, a que os filhos bastardos dos marxistas deram o nome de história, como a luta de classes na teoria, agora dita globalização anti-globalização, pelo internacionalismo aggiornato dos nossos tradutores de Immmanuel Wallerstein, que, quando não são elevados a pensadores oficiosos do regime, são os quase monopolistas dos subsídios estaduais para a investigação em ciências sociais e, quiçá, os futuros grandes-avaliadores do que geraram.
O bem comum
Acontece que, sobre a ordem, outras teses foram emergindo, como a dos eternos neotomistas e jusnaturalistas, para os quais qualquer sociedade política tem que ser entendida como a união estável de um certo número de homens que colaboram em ordem a um fim, fim esse dito bem comum, e que teria de ser definido como a síntese da ordem e da justiça.
Para que a polis volte a ser a orgânica unidade de ordem e não a organicista unicidade substancial, onde o todo não é a totalitária fusão unidimensional das partes componentes do mesmo, um totum continuum, ou simpliciter unum. A unidade política, do ex pluribus unum, sempre foi unidade na multiplicidade, uma essência apenas relacional, uma mera unidade de relação.
A procura do melhor regime
Outros, contudo, ainda mais neoclássicos, ainda mais perto das ideias greco-romanas, até voltam a Platão e Aristóteles, proclamando a necessidade de se permanecer na procura do melhor regime, da ordem política certa, da boa sociedade, como Leo Strauss.
Não faltam sequer os que assinalam a circunstância de, em civilizações cosmológicas, a ordem aparecer como um microcosmos, enquanto, em civilizações antropológicas, a mesma nos surgir como uma espécie homem em ponto grande, um macro-anthropos.
A homologia do sagrado e do profano
Ainda outros referem a homologia do sagrado e do político, como Georges Balandier, porque os dois conceitos são regidos por uma terceira noção que os domina: a de ordem ou de ordo rerum.
Mas, infelizmente, a homologia em causa, continua a ser traduzida nesta pequena casa lusitana, do pensar baixinho, como um sincrético, ora catolaico, de inspiração puritano-oxfordiana, ora laicomarxiano, com muitos bloqueios de progressismo mediático e algumas homílias de telepoder, com arrependidos ou bem-pensantes.
A ordem das coisas
Em qualquer uma das posturas neoclássicas referidas, a ordem é sempre um dever-ser que é, um transcendente situado, axiológico-normativo, algo que se procura, mas que não se atinge, onde o máximo possível de perfeição, realizável pela conversão interior dos homens de boa vontade, é a imitação da ordem universal, chame-se-lhe mão de Deus, ou mimese face ao cosmos, como salienta o próprio Habermas, depois de largar as algemas da metodologia marxiana.
A dupla dimensão das coisas políticas
Com efeito, a política é sempre uma espécie de rosto com duas faces. De um lado, temos as forças, os poderes, e os consequentes confrontos entre esses elementos fácticos. Do outro, temos as ideias, os valores. E entre esses dois lados, estende-se todo um espaço de troca dialéctica entre as forças e os órgãos criados pelo homem.
A política tem pois uma dupla dimensão. Tanto é um campo de forças como um campo de lutas simbólicas, conforme as palavras de Pierre Bourdieu.
Onde os factos do poder procuram inserir-se estrategicamente num quadro estrutural. Onde procura institucionalizar-se o poder, para utilizarmos palavras de Georges Burdeau, promover-se a união entre a força e o órgão, transformando o poder numa força organizada, encontrando-lhe um lugar mais alto onde ele se acumule e, a partir do qual, possa distribuir-se, seguindo o tema dominante nas teses sistémicas de David Easton.
Podemos assim concluir que a ordem tanto não é o mero ordinalismo da paz dos cemitérios, como não se reduz ao hipostasiado juridicismo.
O direito como consequência da sociedade
Recorrendo ao "austríaco" Eric Voegelin, podemos, aliás, dizer o exacto contrário. Que o direito é mera consequência da sociedade, isto é, que a ordem jurídica deriva da ordem da sociedade.
Até porque a ordem da sociedade provém de um todo maior e anterior à mesma, a ordem do mundo (kosmos), que se identifica com a própria ordem do ser, a tal ordem verdadeira e primordial, aquele antes que é um superior e que, como padrão e ideia regulativa, não pode deixar de ser o fim para que se tende. Logo, até o processo de criação do direito visa garantir a substância da ordem na sociedade, obedece a algum que sendo metajurídico, nem por isso deixa de estar positivado, posto na cidade dos homens.
A natureza das coisas
Assim, podemos retomar o sentido platónico e aristotélico da natureza das coisas, mesmo que lhe demos o mais filosofante e contemporâneo título de natur sachen Porque a ordem verdadeira é quase o mesmo que a politeia de Platão, a polis melhor ou a ordem perfeita, pouco diferindo da boa sociedade de Aristóteles ou do bem comum de São Tomás de Aquino.
A verdadeira ordem é o melhor regime da polis, a ordem perfeita, a ordem justa, estando tão próxima da grande sociedade de Adam Smith quanto das regras de conduta justa de outro "austríaco", Hayek.
Neste sentido, o direito é parcela de um todo bem mais complexo, onde a hierarquia é outra. Começando de baixo para cima, temos o mero ordenamento jurídico, dependente da ordem da sociedade, e estes dois níveis, superiormente marcados pela ordem verdadeira.
Dos projectos empíricos à ordem verdadeira
Neste sentido, as normas talvez sejam meros projectos de realização da ordem, embora deva distinguir-se entre os projectos que pretendem ser realizados empiricamente, numa sociedade em concreto, daqueles outros que apenas visam estabelecer padrões de ordem verdadeira, sem expectativas quanto à sua realização em concreto.
Os primeiros, ligados aos chamados reformistas sociais, traduzem-se normalmente no processo de criação do direito em sentido técnico.
Os segundos pertencem a outro nível e têm a ver com a procura da ordem levada a cabo pelos filósofos: essa realidade viva na alma do filósofo, tornada consciência nítida pela recusa do filósofo em sucumbir à desordem do seu ambiente, para continuarmos a citar Voegelin.
O direito com a anti-utopia
E esta procura nada tem a ver com a pretensa construção das utopias, até porque os filósofos podem ser bem mais realistas que os próprios governantes. Até porque a ordem estabelecida pelo aparelho de poder até pode ser uma efectiva desordem.
Neste sentido, o próprio direito, enquanto dever-ser que é, enquanto transcendente situado, é resultado do processo auto-constituinte de uma determinada sociedade, é parte do processo pelo qual a sociedade se dá a si mesmo existência e se preserva a si mesma em existência ordenada. Porque tem de ligar o homem à sociedade, ao Mundo e a Deus, exigindo que se entenda o respectivo processo de criação como uma recolha e uma descoberta da ordem verdadeira. Porque o homem experimenta uma obrigação de sintonizar-se com a ordem da sua existência, com a ordem do ser. Uma ordem que também pode ser descoberta com imaginação e experimentação, onde há tentativas e podem acontecer erros. Que requer aperfeiçoamento e tem de ser adaptada às circunstâncias mutantes.
Os símbolos e as ideias como elementos da realidade
Diga-se, de passagem, que, da realidade social, fazem parte não só os símbolos que a iluminam, mas também as ideias que traduzem uma consciência dessa mesma realidade social. Não reconhecer que estes elementos intangíveis fazem parte da realidade pode levar a que os chamados realistas se tornem até menos realistas que os alcunhados idealistas.
O dever
É nesta procura de adequação, da realidade com um projecto, que surge o dever, a tal tensão experimentada entre a ordem do ser e a conduta do homem, uma tensão paralela à que se estabelece entre a ordem verdadeira e a conduta empírica da sociedade. Assim, com base nestes princípios, Voegelin analisa o estabelecimento das linhas jurídicas dominantes na modernidade.
A soberania pré-absolutista
Na Renascença, com a emergência do conceito bodiniano de soberania, ainda entendida como mera soberania externa, surge um príncipe que se assume como representante da comunidade política, em luta contra o papado e o império. Contudo, esta soberania ainda não é absolutista, nomeadamente no plano interno, dado que o soberano para efeitos inter-estaduais tem um campo de actuação delimitado: os soberanos têm de garantir uma substância de ordem que não é obra deles. Com efeito, a soberania ainda não é a competência da sua competência, ainda não necessita de auto-limitação e as leis do príncipe estão num plano hierarquicamente inferior aos estratos cimeiros do direito divino e do direito natural, bem como das próprias leis fundamentais. As leis editadas por tal soberano são superiores ao costume e às decisões dos magistrados.
O soberanismo absolutista
Só a partir de Thomas Hobbes e do absolutismo surge a soberania interna, ou intra-estadual, uma verdadeira soberania absoluta que se aplica a nível interno, unidimensionalizando as comunidades pelo rolo compressor da obediência. Surge assim um soberano, onde tudo aquilo que ele diz tem valor de lei (quod princeps dixit legis habet vigorem) e que não está submetido a nenhuma ordem superior, nem mesmo à lei que ele próprio edita (princeps a legibus solutus).
E tudo se concebe em nome da segurança interna, a salus populi que ultrapassa o próprio desvario da maquiavélica razão de Estado e passa a conceber que a paz, num mundo de homens lobos dos homens, não passa de uma mecanicista ausência de guerra, gerada pela força das potências e dos Estados em movimento na balance of power..
A desintegração positivista
Finalmente com o chamado secularismo e a desintegração da filosofia, nos séculos XIX e XX, principalmente a partir dos positivismos, é que se afasta da teoria jurídica a questão da ordem substantiva. Surgiria então uma distinção entre a jurisprudência normativa, defensora das regras válidas, e a jurisprudência sociológica, que põe o acento tónico no acto de criação de regras válidas.
Se no primeiro campo se enquadra a teoria pura de Stammler e Kelsen, com a identificação entre o direito e o Estado, para afastar o direito da sociologia e da ideologia, já no segundo campo se inserem as várias tentativas de uma sociologia do direito e das subsequentes escolas sociologistas. E como observa Voegelin, antigo assistente de mais um "austríaco", Kelsen, em nenhum destes processos mentais há preocupação com a procura da ordem verdadeira, pelo que a natureza do direito como a ordem substantiva da sociedade não se tornará objecto de análise.
Aquilo que sobre converge
Poderemos dizer que a ordem política não é simples produto do homem como animal naturalmente gregário, mas antes a consequência do homem como animal racional. Onde o racional não é antinomia face ao natural, mas algo que emerge dele, no sentido de que aquilo que sobe converge, conforme o lema de Teilhard de Chardin.
Cultura
Seguindo a teorização de Friedrich Hayek, diremos que se há uma ordem que deriva da natureza – o que os gregos designavam por physis e que os romanos traduziram por naturalis –, há também uma ordem que foi acrescentada à natureza, algo que foi posto ou cultivado sobre a natureza – aquilo a que os romanos chamavam o positivus e a que hoje damos o nome de cultura.
A evolução espontânea
Só que a ordem acrescentada, tanto foi produto da intenção dos homens como consequência da acção dos homens. São os homens que fazem a história, mas sem saberem que história vão fazendo.
Com efeito, se há uma ordem acrescentada à natureza de forma exógena, uma ordem confeccionada, artificial, há uma outra ordem que à natureza foi acrescentada, mas de carácter endógeno. Uma ordem autogerada pelo tempo, uma ordem acrescentada, mas espontânea, uma ordem constituída por aqueles fenómenos que não são moldados por uma vontade humana intencional, que são independentes de qualquer objectivo prévio, que não fazem parte de um qualquer plano de construção.
Dentro da ordem exógena, da ordem que resulta da intenção dos homens, aquilo que os gregos chamavam táxis, se há uma parcela que resulta da decisão deliberada (thesis), uma ordem que inclui, nomeadamente, as regras de organização, como as que definem a organização do poder, há também uma parcela que surge das convenções ou costumes (nomos).
A sociedade aberta
Já a ordem endógena, que se aproxima do conceito de grego de kosmos, seria um género de ordem marcado por aquilo que Hayek chama regras da conduta justa, visando a grande sociedade, sonhada por Adam Smith, ou a sociedade aberta de ainda outro "austríaco", Karl Popper.
Os tais fenómenos resultantes da acção do homem, mas não da sua intenção, conforme as palavras de Adam Ferguson, o pai-fundador do moralismo escocês e recuperador do liberalismo clássico. A tal ordem onde o homem é levado, por uma mão invisível, a apoiar um objectivo que não fazia parte da sua intenção, segundo as palavras de Adam Smith, aplicadas ao comércio internacional. Aquela ordem com regras, onde o homem, segundo Hayek, através de meios não desejados por ele, nem projectados por ninguém, é levado a promover resultados que, de maneira nenhuma, fazem parte das suas intenções. E que nunca se confundiu com o libertário anarquista de certos neoliberais, pouco dados às regras e à própria ética.
Os princípios de política
Essa ordem é aquela que está para além dos ordenamentos estudados pelo jurista, aproximando-se daquilo que o economista também procura e que a moral, enquanto ciência dos actos do homem como indivíduo, do mesmo modo, tenta expressar, equivalendo ao que os autores do século XVIII qualificavam como princípios de política.
Aquele interesse comum da humanidade que tanto guiaria a obrigação que constrange, o direito, como a virtude, que apenas aconselha e persuade, a moral, conforme Kant.
Aquilo a que Hegel dava o nome de ethos, uma terceira categoria hierarquicamente superior à moral e ao direito
As regras que fazem a própria sociedade
Talvez haja esse tal tipo de ordem que, em vez de ser produto das regras feitas pela sociedade, é a produtora da própria sociedade, equivalendo às tais regras que não são feitas pela sociedade, mas que, pelo contrário, fazem a própria sociedade. As tais regras que não conhecemos completamente, a tal orientação vital que as leis formais das organizações dos homens podem violar e que têm sanções automáticas a que não podemos esquivar-nos.
Política, moral, religião e direito
Neste sentido, as coisas políticas são paralelas às coisas da moral, da religião e do direito. Aliás, no sincretismo genético da polis grega, não havia distinção entre essas ordens normativas da realidade, de tal maneira que as primeiras reflexões sobre a política são marcadas pela procura da virtude englobante de todas elas, a justiça, simbolizada por uma mulher, a deusa Dike, filha de Zeus e de Thémis, que, de olhos abertos segurava, na direita, uma espada, e na esquerda, uma balança de dois pratos, mas sem fiel. Essa mesma deusa a que os romanos deram o nome de Justitia, vendando-lhe os olhos e passando a fazer depender a balança de um fiel.
As coisas políticas, as coisas da religião e as coisas do direito, todas procuram uma ordem comum, a ordem que se opõe ao caos, um equilíbrio que sempre precisou de uma espada e de um fiel, para poder ser harmonia ou mistura de contrários. Porque nunca houve, em concreto, nenhuma sociedade dos filhos de Adão em que todas as regras fossem espontaneamente cumpridas, porque, desde que os deuses deixaram de ser pastores do rebanho humano, sempre foi precisa uma heteronomia, um poder entendido como a mistura da força com ideias, capaz de punir o prevaricador, para que a coacção e a forma passassem a ser as irmãs-gémeas da liberdade.
A anti-razão ao serviço da razão
Com efeito, para socialmente vivermos e convivermos parece não bastar uma simples ordem de consciências, uma qualquer conjugação de boas intenções nascidas da autonomia de cada um. Sempre foi necessário o recurso a uma ordem exterior às autonomias, às vontades interiores de cada um, sempre foi preciso o recurso a uma heteronomia, à anti-razão ao serviço da razão, segundo as palavras de Jean Lacroix. Embora também sempre se tenha proclamado que essa heteronomia teria de ser serviçal tanto de uma ordem interior ou imanente à colectividade como de uma ordem superior, produto da racionalidade ou da divindade e, por isso mesmo, entendida como o exacto contrário da heteronomia.
O que é uma norma?
As colectividades dos homens sempre precisaram de um padrão superior que medisse a variedade. Sempre foi preciso um esquadro (norma), uma régua (regra) ou uma medida (cânon), um padrão, bem diverso da utopia (o sem lugar) e da ucronia (o sem tempo), que, não tendo que ser um objecto eterno e imutável, tem, contudo, que ser mais elevado e menos mutável que o próprio ideal conjuntural de uma determinada sociedade, ao contrário do dogma da escola histórica e do positivismo, para quem a perfeição não passaria de um mero segregado histórico, negando-se o humanismo activista, para quem não é a história que faz o homem, mas sim o homem que faz a história.
Um padrão que tem que ser uma razão que actua, uma razão que actua através do homem que actua, uma razão no tempo da história, uma exigência de perfeição para um dado momento da história e que, por isso mesmo, tem que ser um padrão progressivo, evolutivo, de conteúdo variável, esse qualquer coisa que nos permita justificar a esperança, chame-se direito natural, direito da razão ou justiça política.
A recta razão
Ao longo dos tempos, esse padrão foi objecto das mais variadas tentativas de explicação. Se há quem o faça remontar a ordens directas da divindade, ao estilo do código de Hamurabi ou das tábuas recebidas por Moisés, há quem o ligue a velhos e remotos costumes, a uma tradição que precisa de ser conservada por pontífices. Se há quem o confunda com a sabedoria registada pelos sábios antigos, há também quem diga que o mesmo tem a ver com um sistema de princípios filosóficos que exprimem as relações necessárias que derivam da natureza das coisas. Ou com as leis inscritas no coração dos homens.
Os menos preocupados chegam mesmo a identificá-lo com um simples corpo de acordos feitos entre os homens, enquanto outros persistem em considerá-lo como o reflexo da recta razão.
Mas há também quem o visione como mero conjunto de regras descobertos pela experiência humana, não faltando sequer os que o negam, dizendo que tudo não passa de um ditame das classes dominantes ou dos mais fortes, económica ou socialmente.
A harmonia
A vida em sociedade não é nem uniformidade nem unidimensionalidade. A ordem não é uma planura desértica, mas uma cordilheira de irregularidades e de diferenças, onde a regularidade e o normal são precisamente os irregulares e os anormais, segundo a perspectiva daqueles que apenas sabem pensar a uma só dimensão, sem perceberem os nichos e os acasos.
A sociedade não é mera agregação de átomos, onde o conjunto é apenas somas das partes, como num montão de areia. A sociedade são muitas sociedades, é uma unidade de ordem, uma coordenação de moléculas, uma estrutura estratificada, onde a ordem é apenas uma espécie de desordem organizada ou de anarquia ordenada, uma coordenação de elementos dispersos, uma concórdia dos discordes, onde, em vez da disciplina unidimensional, predomina a harmonia. Onde, em vez de um bloco monolítico hierarquista, tenta imitar-se o pluralismo e a flexibilidade da harmonia cósmica.
Os valores
Com efeito, viver é optar permanentemente por valores, por padrões que não são algo de subjectivo ou de arbitrário, também não estão completamente desligados da realidade.
Viver é realizar fins, isto é, valores racionalmente reconhecidos como regras de conduta.
Seguindo a lição de Miguel Reale, até podemos dizer que os valores não estão separados da existência. Eles não existem por si mesmos, não são realidades absolutas, apenas valem, apenas são realidades relativas. E só valem quando assumem a dimensão do interesse geral, quando são reconhecidos pela comunidade onde se aplicam.
Primeiro, porque só se objectivizam através da subjectividade, quando a intimidade da nossa consciência os torna objectivos, não estando constituídos antes de se subjectivarem.
Segundo, porque todos os valores são bipolares, dado que qualquer coisa que vale, pode também não valer, havendo, para cada valor positivo, um valor negativo; por outras palavras, cada valor tem sempre um contra-valor ou um desvalor, tal como cada regra é sempre susceptível de violação: só o homem tem regras porque só o homem pode não cumprir as regras.
Terceiro, porque os valores se implicam reciprocamente, dado que nenhum deles se realiza sem a realização dos restantes.
Quarto, porque os valores se ordenam e graduam segundo uma hierarquia, uma escala de valores.
Entre o horizontal e o vertical
A partir desta perspectiva de relativismo pouco céptico de anti-utilitarista, podemos dizer que, como todas as realidades referidas a valores, também as coisas políticas têm uma estrutura horizontal, dado que mantêm relações com o ambiente e com o próprio passado, e uma estrutura vertical, pois desenvolvem-se no tempo, têm uma duração, nascem, crescem e morrem.
Quem aceitar esta perspectiva relativista, quem reconhecer que a existência histórica é, acima de tudo, uma criação e uma afirmação de valores, não pode deixar de aceitar que os valores constituem uma das parcelas do objecto material da ciências política, não pode deixar de reconhecer que são os valores, por exemplo, que nas coisas políticas geram a auto-suficiência de uma perfeição (v.g. a soberania), a identidade cultural (v.g. a nação) e a ordem concreta (v.g. o Estado).
Sem os valores, a ordem política não passaria de mera facticidade, não possuindo sentido nem íntima ordenação. Com os valores a ordem política passa a ser uma espécie de dinâmica de distintos à procura de harmonia, onde as bipolaridades e as antinomias são exigências vitais.
Na verdade, são os valores que dão à ordem política aquela aura de crise e de problema que tornam possível a interiorização da polis, transformando a política numa quotidiana opção por valores que se impõe a cada cidadão. Por exemplo, a tradicional antinomia entre a segurança e a justiça, entre a salus populi, suprema lex e a justitia, fundamenta regnorum, constitui um daqueles desafios permanentes que combatem a inevitável tendência de cada um para a apatia.
São os valores que tornando irrealizável a democracia, obrigam a que, na prática, tenha de procurar-se, por isso mesmo, a procura da realização da justiça.
São os valores que exigem que a razão não seja apenas a razão calculista, a técnica dos rácios, do cálculo dos custos e benefícios, mas antes uma razoabilidade valorativa.
A justiça política
A ordem, a taxis dos gregos, a ordo ou ordinatio dos romanos, o conjunto das regras que distribui e regula as diversas funções de autoridade, incluindo aquela que é a mais elevada, a suprema magistratura, que tanto pode ser detida por um só, por poucos ou por muitos.
A polis emerge assim como uma realidade cultural acrescentada ao cru da natureza, como uma ordem artificial, uma invenção dos homens, um poder-ser que se projecta em dever-se, um dever-ser que, por isso mesmo, pode não ser, porque uma coisa cultural é aquilo que deve-ser e não é, tornando-se, por essa razão, em coisa prática.
II
ENTRE RAMBO E KANT
É com base nestes princípios que começamos por subscrever o citado discurso do Presidente George W. Bush, ao reclamar a coincidência entre a filosofia da república americana e as bases da velha Europa, de matriz greco-romana, estóica e, depois, cristã, antes de voltar a ser aristotélica e de se volver em liberal e democrática, para a construção do Estado de Direito universal: We believe in open societies ordered by moral conviction. We believe in private markets humanized by compassionate government. We believe in economies that reward effort, communities that protect the weak and the duty of nations to respect the dignity and the rights of all.
Neste sentido, reconhecemos que só pode haver ordem, se não perdermos a ideia de termos a mission in the world beyond the balance of power or the simple pursuit of interest.
Apenas discordamos da codificação dos princípios de tal missão civilizacional, porque se President Wilson had come to Europe with his 14 points for peace eis que God himself had only 10 commandments…
A velha ordem internacional
A velha ordem internacional, nascida da Carta do Atlântico (14 de Agosto de 1941), e das conferências de Bretton Woods (22 de Julho de 1944), Yalta (4 a 11 de Fevereiro de 1945), São Francisco (concluída em 26 de Junho de 1945) e Potsdam (Julho a Agosto de 1945), essa que fez os julgamentos de Nuremberga, contra os nazis, mas amnistiou o massacre de Katyn, a favor dos estalinistas, e que se consolidou pela chamada Guerra Fria, se foi simbolicamente derrubada pela queda do muro, em 1989, porque se reproduziu mentalmente pelo securitário do medo, ainda não nos permitiu lançar suficientes sementes de esperança para uma nova orgânica internacional.
O impossível direito internacional público
Porque se mantém em vigor um modelo de direito internacional público que talvez ainda não tenha suficiente justiça para ser efectivo direito, o mínimo de autodeterminação para ser inter-nacional, nem uma altura adequada de fins para ser público. Por outras palavras, a nova ordem ainda não pode ter um mínimo de justiça mundial, porque o direito que a convoca e pensa reger tanto não é suficientemente válido, como lhe faltam os adequados requisitos da vigência e da eficácia, as três dimensões do jurídico indispensáveis para que a justiça não seja impotente.
Neste sentido, temos de concluir que, por enquanto, estamos condenados a continuar a viver em regime de vazio de justiça mundial.
A paz dos vencedores
A tal ordem a que chegámos depois de 1989, à imagem e semelhança da que a precedeu, apesar de longos intervalos de paz imperial, ainda não obedece aos mínimos civilizacionais da chamada paz pelo direito. Ela ainda não é suficientemente polida ou civilizada, ou, dito por outras palavras, ainda não é marcada pelos fins superiores que levaram os homens a constituir uma polis, ou uma civitas. Aquilo que, no plano interno dos Estados, se conseguiu com o chamado Estado de Direito, isto é, o reforço da institucionalização do poder que nos fez superar o estádio da vingança privada, ainda não marca o pulsar das relações entre os Estados, dado que estes continuam a gostar de viver em regime de estado de natureza.
Falta uma justiça mundial porque os poderes mundiais, que têm vigência e eficácia, ainda não são dotados de validade, dado não interiorizarem o direito como fundamento e como forma de limitação.
A necessária justiça mundial
Neste sentido, esta ordem internacional ainda é ditada pelo regime da paz dos vencedores, onde tem razão quem vence e onde não vence necessariamente quem tem razão. Logo, o day after aos pretensos tratados de paz, ou de limitação de armamentos, tem mais a ver com a razão da força do que com a força da razão. Daí que a ordem internacional quase se aproxime de uma desordem bem organizada, da anarquia madura, distanciando-se qualitativamente daquela que é a institucionalização do poder de uma polis, de uma civitas ou de um Estado de direito.
Os três pilares de Bush
Compreendemos, pois, a razão que levou o Presidente George W. Bush, a larger a postura "cowboy" de Rambo e a peregrinar Locke, talvez antes de chegar a Kant. Por enquanto, ainda nos diz apenas que:
The peace and security of free nations now rests on three pillars. First, international organizations must be equal to the challenges facing our world, from lifting up failing states to opposing proliferation.
The second pillar of peace and security in our world is the willingness of free nations, when the last resort arrives, to retain aggression and evil by force.
The third pillar of security is our commitment to the global expansion of democracy and the hope and progress it brings as the alternative to instability and hatred and terror.
O vazio mundial de justiça
É pouco. Precisávamos, em primeiro lugar, de uma ideia de justiça universalmente consensualizada, capaz de mobilizar uma força institucionalizada que a tornasse independente. Por outras palavras, precisávamos que a política deixasse de obedecer às razões de Estado e passasse a ser pautada por um Estado razão.
Foi isto que proclamou Kant nos finais do século XVIII, onde, contrariamente a algumas leituras pietistas, voltou a proclamar-se a necessidade clássica de uma juridificação do poder ou de uma moralização da política. Para que os Estados não fossem apenas criadores, mas também objectos do direito.
E não foi por acaso que em 1995, no bicentenário da ideia kantista da chamada paz perpétua, dois dos principais teóricos políticos da actualidade vieram a terreiro, glosando tais ideias. De um lado, John Rawls (1921- ), com uma proposta de regresso ao direito das gentes em The Law of Nations. Do outro, Jürgen Habermas (1929-), com uma releitura Des ewigen Friedens. Tal como, antes, João Paulo II, na Centesimus Annus, de 1991, retomava as teorias da comunidade internacional de Vitória e Suárez.
Porque sempre admitimos que há actos de violência menos violentos do que certos estados de violência. E até tratámos de também nobelizar antigos terroristas feitos homens de Estado. Fiéis àquela hipocrisia que continua a não deixar comunicar a política, a moral e o direito, quando importa encontrar um fundamento espiritual para a ordem mundial. E a única via que nos permitirá vencer a violência desta paz dos vencedores, aliás bem próxima da paz dos cemitérios, e instaurar a paz pelo direito.
Ainda não chegámos ao fim da história
A paz dos vencedores, essa que admite o Estado como lobo-do-Estado, onde até a comunidade internacional não passa de uma guerra de todos contra todos, contradiz a realidade de um mundo novo, surgido daquilo que alguns teorizam como a revolução global. Afinal, mesmo depois do 11 de Setembro de 2001, o tal gnóstico fim da história não passou de um mero regresso da história
Neste sentido, voltamos a citar Bush:
We cannot rely exclusively on military power to assure our long-term security. Lasting peace is gained as justice and democracy advance. In our conflict with terror and tyranny, we have an unmatched advantage, a power that cannot be resisted, and that is the appeal of freedom to all mankind. As global powers, both our nations serve the cause of freedom in many ways in many places. By promoting development and fighting famine and AIDS and other diseases, By working for justice By extending the reach of trade The movement of history will not come about quickly. Many governments are realizing that theocracy and dictatorship do not lead to national greatness; they end in national ruin. It is suggested that the poor, in their daily struggles, care little for self-government, yet the poor especially need the power of democracy to defend themselves against corrupt elites. We will encourage the strength and effectiveness of international institutions. We will use force when necessary in the defense of freedom. And we will raise up an ideal of democracy in every part of the world. On these three pillars we will build the peace and security of all free nations in a time of danger.
A banalização do mal
Aliás, a hiperviolência concentrada, que parecia ser monopólio dos Estados, conforme a clássica tese de Weber, está definitivamente fragmentada, como o demonstrou o ataque de Bin Laden às Twintowers de Nova Iorque, em 11 de Setembro de 2001.
Com efeito, segundo contabilidades seguras, haverá hoje cerca de 25 Estados com capacidade para a utilização de mísseis balísticos, os quais poderão levar consigo armas químicas ou bacteriológicas, nessa suprema banalização do mal, onde não compensará trancarmos as portas do crime, depois de termos a casa arrombada.
E uma das principais hipocrisias mundiais, porque os que mais discursam sobre a paz têm tido a garantia de uma espécie de benefício do infractor. Aliás, a corrida armamentista era inevitável, principalmente quando cento e tal novos Estados se institucionalizaram quase ex nihilo. Porque os mesmos, antes de assegurarem o bem-estar ou a justiça, foram condenados pelas circunstâncias a terem que começar pelo poder nu da chamada segurança, dando corpo a aparelhos militares e policiais, para onde mobilizaram grande parte dos escassos recursos que tinham disponíveis.
A globalização, se impediu aquilo que muitos consideravam a inevitável Terceira Guerra Mundial, essa guerra entre grandes Estados, não deixou de manter a perturbadora ausência de uma paz pelo direito, a peace trough law de Hans Kelsen que, tão magistralmente, foi secundada na nossa escola por antecessores meus.
Hoje, se apenas os Estados Unidos e a China podem sustentar um tal tipo de guerra inter-estadual, de dimensão mundial, eis que aumentaram as possibilidades de conflitos regionais, dado que, a este nível, surgiram novas potências. É o exemplo de um potencial conflito entre a China e Taiwan, ou entre a Índia e o Paquistão.
Acresce que, além dos Estados, surgiram novas entidades capazes de intervenção bélica, como associações criminosas internacionais e movimentos fundamentalistas ou etnonacionalistas, de paradoxal dimensão trans-estadual, os quais tratam de instrumentalizar o próprio terrorismo que até pode ser controlado por redes difusas, como foi demonstrado pelo ataque às Twin Towers, sustentado por uma al qaeda, cujos santuários passavam pela grande finança ocidental.
De qualquer maneira, a luta contra a guerra, com o consequente desarmamento, só é possível se vier a estabelecer-se um sistema comum de segurança que passe a proclamar que não são apenas todos os Estados que têm direito à segurança, mas também todos os povos, pelo que tem de ser interpretado de outro modo o direito à não ingerência dos assuntos internos dos Estados existentes.
Só a partir de agora Kant deixou os domínios da metafísica e se transformou num realista. Porque se é verdade que cada grupo humano só ganha consciência de si mesmo quando consegue estabelecer uma fronteira com o outro, levando à sobrevalorização da ameaça vinda de fora, como principal elemento de desintegração, só neste nosso tempo é que surgiu uma ameaça global e, consequentemente, só agora é que os homens começaram a interiorizar a necessidade dessa Weltrepublik, com o realismo do sonho a poder vencer a anarquia que, de tão madura, ameaça apodrecer.
Talvez importe vislumbrar alguns dos sinais dos tempos que a hiper-informação da aldeia global oculta. Talvez importe tentar penetrar na constelação causal das nossas circunstâncias, a fim de conseguirmos detectar as correntes profundas da história que nos arrastam. As lentes imediatistas, utilizadas pelos analistas do curto prazo, descrevendo, com os mais pormenorizados zooms das reportagens directas, as árvores da nossa floresta, quando não a casca ou um pedaço de folha, não nos têm deixado perspectivar a própria floresta, coisa que apenas se consegue pela técnica da compreensão e pelo clássico método científico que impõe que se procure substituir a opinião pelo conhecimento.
Somos dos que gostariam de subscrever o Projecto da Paz Perpétua de Kant e até de participar na elaboração de uma lei universal que colocasse a guerra fora de direito, declarando-a como o inimigo público número um de toda a humanidade. Mas sabemos, de experiência vivida e pensada, que em nome dessas ilusões, Woodrow Wilson (1856-1924), com os seus 14 Pontos e o Pacto Briand-Kellog, não impediram que, depois da Grande Guerra de 1914-1918, se tivessem acirrado aqueles ressentimentos que conduziram à Segunda Guerra Mundial, assim se demonstrando que muitas das principais causas do inferno são as boas intenções sem força.
O direito é mais precioso do que a paz
Por isso é que, parafraseando Wilson, consideramos que a boa ordem internacional, se não funcionar, teremos de a fazer funcionar. Não diremos, como Aristide Briand (1862-1932), que a paz vem antes de tudo, a paz vem até antes da justiça. Preferimos, o dito do mesmo presidente norte-americano, para quem o direito é mais precioso do que a paz, desde que entendamos a justiça como a mãe do direito.
Com efeito, se temos os olhos postos no céu dos princípios de uma paz pelo direito, também sentimos os pés presos ao chão da realidade dos homens concretos. Embora acreditemos não ser utopia a constituição de uma organização universal que consiga estabelecer, na comunidade internacional, um estádio semelhante àquele que no interior dos Estados já foi atingido, com o Direito a superar a vingança privada, apoiado no monopólio da força física legítima, julgamos que só dentro de um longo prazo, que poderá ser de séculos, poderemos banir a guerra e estabelecer a necessária paz pelo direito.
Até o tradicionalista espanhol Álvaro d’Ors vem defender um regionalismo funcional, a superação da actual estrutura estadual tanto por organismos supra-nacionais (ad extra), como por autonomias regionais infra-nacionais (ad intra), com uma ordem internacional baseada no princípio da subsidiariedade.
Os novos sinais dos tempos
Podemos não ter chegado ao almejado fim da história, mas assistimos a uma radical mudança, onde se detectam, entre outros, os seguintes sinais políticos dos tempos:
Em primeiro lugar, com o findar da Guerra Fria e com os sucessivos acordos entre norte-americanos e russos, tornou-se um facto consumado a abolição da guerra entre os principais centros estaduais de poder.
Em segundo lugar, deu-se a inequívoca emergência de um novo centro mundial do poder estadual: o conglomerado das unidades políticas ocidentais, com ramificações mundiais, assentes numa vasta rede de instituições internacionais, lideradas pela ONU, que redobraram a legitimidade da ordem internacional.
Em terceiro lugar, incrementaram-se modelos democráticos, entendidos à maneira ocidental, que se tornaram numa espécie de símbolo do desenvolvimento político.
Em quarto lugar, emergiu um outro direito internacional, assente em novas instituições, como os tribunais internacionais especiais, destinados aos julgamentos dos crimes de guerra e genocídio sobre o Ruanda e a Jugoslávia.
A falta de um Estado de direito a nível universal
Pode, pois, concluir-se que o direito positivo internacional não conhece qualquer tipo de definição universal de Estado e, muito menos, qualquer identificação rigorosa quanto aos padrões mínimos de um Estado de Direito ou de uma democracia.
Isto é, o principal sustentáculo da nossa ordem internacional acaba por ser uma nebulosa crença, dependente do movimento das ideias, algo que flutua ao sabor das vagas doutrinárias dos mestres intelectuais e das vulgatas dos comunicadores, na sua relação directa com a opinião pública. Infelizmente, neste nosso tempo de certezas científicas, os homens ainda não conseguem entender-se quanto a uma noção mínima da matriz institucional susceptível de lhes propiciar uma relação estável.
III
A ANGÚSTIA DOS PRETENSOS REALISTAS
A escola que escreve os discursos do Presidente George W. Bush e que, entre nós, apesar de algum colorido vocabular dos receptores, continua a ser a perspectiva dominante da pretensa cientificidade da política internacional, considera que o direito internacional, apesar de ser um limite ao poder, não é a chave da política internacional, nem o único pilar da ordem internacional, dado que os reais interesses em jogo impediriam a generalizada observância das regras do direito nas relações entre os Estados. Assim, trata de socorrer-se dos métodos da política internacional, praticando a análise a partir das relações de poder (power politics), o estudo das constantes do comportamento (behavioral methods), reclamando o monopólio das técnicas da ciência política.
Decisionismo
Neste sentido, a escola aproxima-se do modelo decisionista expresso por Carl Schmitt, para quem a essência da soberania está na decisão em caso de excepção, naquela decisão-limite onde a ordem deixa de assentar numa norma. Também os realistas norte-americanos não reparam que esse anormal acaba por tornar-se o normal, dado que a excepção se transforma em regra e o provisório em definitivo, mas assente num definitivamente provisório.
Powerpolitics
O elemento central das teses de Morgenthau está, aliás, na respectiva definição de política de poder (power politics), entendida como uma relação psicológica entre dois pólos, onde, do lado activo, está aquele que o exerce e, do lado passivo, aquele sobre quem o mesmo é exercido.
Tal poder também se distinguiria tanto da mera influência como da força, entendida como violência. Até haveria uma distância entre o poder que se usa e o poder que não se usa, bem como um poder legítimo, o chamado poder moral, e um poder ilegítimo, qualificado como imoral.
Para o fundador da escola, o mundo, imperfeito como é de um ponto de vista racional, é o resultado de fontes inerentes à natureza humana e que há leis objectivas que têm as suas raízes na natureza humana (1955, intr.).
Aliás, quando utilizamos a palavra poder, para traduzir power politics, subscrevemos uma imensa confusão, porque apenas pensamos em Machtpolitik, naquilo que Kant entendia como potentia, isto é, com o poder do Estado na sua relação com outros Estados, esquecendo que o mesmo Estado também é res publica, quando tem por liame o interesse que todos têm em viver no estado jurídico, e gens, quando se pensa numa hereditariedade, seja da origem nacional, seja da própria união hereditária, pré-política, como acontecia na Grécia, com a genos a preceder a polis.
O Estado é algo mais do que aqueles que lêem Morgenthau, sem compreenderem a diferença que Weber estabeleceu entre Macht e Herrschaft. O Estado talvez seja, ao mesmo tempo, comunidade, soberania e nação, isto é, república, para o Estado-Comunidade, principado, para o Estado-Aparelho, e comunidade de gerações, quando se pensa em Nação, para mantermos a célebre terminologia de Kant.
Pátria pode rimar com mundo
Seguindo Denis de Rougemont (1906-1985), é perigosa essa confusão. Porque se se misturam pátria, Estado e nação, ou espiritual, cultural e político, nos limites de uma dada fronteira, chegamos precisamente ao fim que se pretende evitar - o Estado totalitário. Na mesma senda, Wilhelm Röpke vem defender que a pátria pode rimar com o mundo, mas sem simpatizar com aquilo que considera o elemento intermediário, a nação: a pátria pode soar em harmonia com o mundo … o verdadeiro sentimento da pátria exige que não se exclua o maior, nem o menos.
As perspectivas realistas assentavam, aliás, num terreno cultural que havia sido semeado por autores como Reinhold Niebuhr (1892-1971), pastor protestante e professor em Nova Iorque e Yale, que veio fazer uma radical separação entre a moral individual e a moral dos Estados, salientando que esta é marcada pelo egoísmo, pelo interesse nacional e pela força. Porque há uma crescente tendência entre os homens actuais de se considerarem éticos porque delegaram os seus vícios em grupos cada vez maiores.
O perigo da razão de Estado
Por outras palavras, a escola realista, invocando o puritanismo desta ética protestante, distanciou-se das caricaturas maquiavélicas e quase repetiu os ditames da chamada razão de Estado cristã, expressos por Justus Lipsius (1547-1606), esse professor de Lovaina, autor de Politicorum, sive Civilis Doctrinae, com uma primeira edição de 1589, o manual da governação filipina, onde se faz a apologia de um Estado burocrático e forte, bem distante das teses então assumidas por um Desidério Erasmo (1469-1536) ou por um Juan-Luis Vives (1492-1540). Aí se considerava injustificável e absolutamente condenável a fraude política grande, como a perfídia e a injustiça, embora se admitissem duas outras formas. A fraude ligeira, como a desconfiança e a dissimulação, seria aconselhável a qualquer estadista. Já a fraude média, como a corrupção e o engano, entraria na categoria do tolerável. De assinalar que a primeira versão da obra ainda foi colocada no Index dos livros proibidos pelo Papa, em 1590, quando o autor ainda era protestante. Mas o mesmo, depois de convertido ao catolicismo, logo refaz o texto anterior, em 1596, fundando aquelas teorias que vão servir de literatura de justificação para beatérios autoritários do século XX.
Os maquiavélicos defensores da liberdade
Dava-se assim o regresso a uma nova forma de razão de Estado, recriando-se uma ética da responsabilidade, distinta da ética da convicção, porque os fins poderiam justificar os meios, numa lógica dita dos maquiavélicos defensores da liberdade, contra aquilo que se convencionou chamar o império do mal, o inimigo soviético.
Do poder dos sem poder à política antipolítica
Paradoxalmente, a viragem do mundo, concretizada no ano de 1989, foi a melhor demonstração da falta de realismo de uma teoria que, de tal qualificação, pretendia ter o monopólio. Porque o que liquidou o concentracionarismo soviético, nasceu, sobretudo, daquilo que Vaclav Havel assumiu como o poder dos sem poder, ou, para utilizarmos a terminologia do polaco Thadeusz Mazowiecki, de uma política antipolítica, marcada por um combate pela consciência onde importaria a fidelidade aos princípios morais fundamentais.
Afinal talvez haja que rever a ideia de Maquiavel, segundo a qual o Homem não faz o bem a não ser quando é pressionado pela necessidade. Depois, será de pôr em causa a nietzschiana perspectiva da Wille zur Macht, daquela vontade de poder pelo poder que faz um apelo ao vitalismo de certo homem de Estado, entendido como um homem de acção, dono de uma virtù que irradiaria sobre o conjunto dos outros seres humanos e que reduziria a vida a um movimento pelo movimento, numa velocidade que nos levou aos precipícios dos totalitarismo.
Uma ideologia pretensamente científica
Toda esta geração realista acaba por negar o próprio nome com que procurou qualificar-se, porque, dos factos, acabaram por extrair valores. Com efeito, ao tentarem uma política desligada da ética, acabaram por criar uma ética com fundamentos não éticos, formulando leis e máximas, a partir de factos, apesar de, paradoxalmente, considerarem que, dos princípios transcendentes, não poderiam extrair-se conclusões práticas.
Porque, como reconhece expressamente Raymond Aron, considerar o poder como o objectivo único ou supremo dos indivíduos, dos partidos ou do Estado, não é uma teoria no sentido científico da palavra, mas uma filosofia ou uma ideologia.
O realismo político, afinal, apenas gerou um novo rebaixamento dos fins da política, principalmente quando difundiu um conceito de estadista capaz de, em nome da responsabilidade do Estado, suspender as convicções, por admitir que os fins, considerados superiores, justificariam os meios inferiores utilizados. E não tardaria que, em nome da democracia, se protegessem autoritarismos antidemocráticos, invocando-se a luta contra um mal maior, o comunismo e o consequente totalitarismo do modelo soviético.
Contra o rebaixamento dos fins políticos
É a partir daqui que se estabelece o princípio da universalidade política, dado podermos encontrar todas as funções políticas em todos os sistemas políticos, incluindo os mais simples. Aliás, não existiria nenhuma sociedade que, para manter a ordem interna e externa, não tivesse uma estrutura política. Se nos sistemas mais simples, uma, ou poucas estruturas, cumprem todas as funções políticas, já em sistemas desenvolvidos há uma forte diferenciação, isto é, um grande número de estruturas, cada uma delas especializada numa determinada função política.
Com efeito, esta perspectiva salienta que, em todos os sistemas as mesmas funções se encontram necessariamente preenchidas e que, apesar de uma determinada estrutura tender a especializar-se numa determinada função, isso não significa que não possa exercer secundariamente outra (v.g. os tribunais, a quem cabe a função judicial de aplicação do direito, são também criadores do direito).
A ordem das ordens
A polis constitui a ordem das várias ordens normativas da realidade, aquele ser, aquele kosmos que se opõe ao não-ser, ao caos.
De facto, a ordem religiosa, a ordem moral, a ordem dos costumes, a ordem jurídica e a ordem da economia são apenas uma parcela da ordem das ordens.
Deste modo, só pode compreender-se o poder político através de uma perspectiva globalista e institucionalista.
Nestes termos, podemos dizer que o poder político, enquanto poder institucional, parte do pressuposto que toda a polis é uma iuris societas, que toda a polis tem um bem comum porque é uma instituição, porque é uma ideia de obra ou de empresa que se realiza e dura no meio social, segundo a tradicional definição de Maurice Hauriou.
O poder institucional aproxima-se do conceito de governo em sentido amplo. Porque governar é conduzir um determinado grupo a um determinado fim, tal como o timoneiro, usando o leme, conduz o navio para um determinado porto. Governar é, conforme a imagem de Karl Deutsch, pilotar o futuro, caminhar para determinados fins segundo determinadas regras.
Na verdade, dizer que existem regras e ordem, no caso do homem, significa dizer que as regras são constantemente ameaçadas pelo não cumprimento e que a ordem é sempre ameaçada de desordem. Não há, como assinala Lucy Mair, nenhuma sociedade em que as regras sejam efectivamente cumpridas e a sociedade existe precisamente para lutar contra a entropia que a ameaça de desordem, como reconhece Georges Balandier.
Saliente-se, contudo, que, se o poder político, enquanto poder institucional, faz parte da ordem da sociedade, se impõe que se fale em regras e em ordens, isso não pode levar-nos a considerar que só será possível tratarmos do poder de forma normativista ou partir do pressuposto que só a ciência do direito está apta a tratar do poder. Nada mais redutor.
Podemos estudar realidades normativas sem normativismo, tal como temos de estudar os valores de forma não valorativa.
As ordens normativas da sociedade não se reduzem à ordem jurídica. Ao lado, por cima ou e em comunicação com esta há outras ordens, desde a ordem religiosa à ordem moral. Na linha de Hayek, até podemos dizer que há uma ordem comum à política, ao direito e à economia, o cosmos em luta com o caos e com o construtivismo e o normativismo.
Para que os homens sejam homens de boa vontade, para que cresçam para cima e para dentro, dado que dentro das coisas é que as coisas realmente são!
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